Faz apenas alguns dias que se comemorou o que é conhecido na Argentina como a “crise de 2001”, que ocorreu em dezembro daquele ano, desencadeando uma crise econômico-financeira que afetou uma multidão de cidadãos e resultou em uma desordem política, onde abundaram as marchas, os protestos e a pancadaria em todo o país, o que terminou provocando a saída antecipada do Presidente Fernando De la Rúa.
De la Rúa, do partido centenário que historicamente representou a social-democracia na Argentina, a União Cívica Radical (UCR), ganhou as eleições de 1999 ao formar uma aliança eleitoral com a força de centro-esquerda, Frente País Solidário (FREPASO). Desse modo, a Aliança pelo Trabalho, Justiça e Educação tornou-se a coalizão governante. Durante a campanha eleitoral que levou De la Rúa à presidência, ele repetiu incansavelmente que no “um a um não se toca”, e isto era sem dúvida o que os eleitores queriam escutar. Uma desvalorização no marco de uma sociedade altamente endividada resultaria em penúrias para uma grande quantidade de argentinos.
O que era conhecido como “um a um” nada mais era do que o resultado do Plano de Conversibilidade implementado durante o governo peronista de Carlos Saúl Menem em abril de 1991, que estabeleceu por lei uma relação cambiária fixa entre a moeda local e a estadunidense, na proporção de um peso conversível para um dólar. Este plano, junto às medidas ortodoxas recomendadas pelo Consenso de Washington para reduzir o gasto público, sem dúvida ajudaram a equilibrar as contas macroeconômicas e a frear a espiral inflacionária que havia submergido o país em duas crises hiperinflacionárias.
O que não poderia ou não seria contemplado era que, em um contexto de desregulamentação do comércio, a prolongação por quase dez anos de um plano de apreciação monetária condenou a Argentina a ser incapaz de competir com o resto das economias do mundo, e assim, a desindustrialização e o desemprego aumentaram significativamente, e com isso a pobreza começou a emergir como um problema de dimensões preocupantes.
Assim, após dez anos ininterruptos de peronismo neoliberal, o padecimento de “ser o país mais caro do mundo” e a corrupção desenfreada levaram o radical Fernando De la Rúa a assumir a presidência em 1999. Entretanto, o novo governo também foi rapidamente manchado pelo alegado “suborno” no Senado em outubro de 2000, enquanto a indústria e o emprego continuaram a sofrer. O principal denunciante foi o vice-presidente da FREPASO, Carlos “Chacho” Álvarez, que renunciou imediatamente. E a partir daquele momento, começou o início do fim da aliança, que finalmente sucumbiu após a iminente desvalorização definida, o que resultou na apreensão de depósitos nos bancos de milhões de aforradores que acudiam desesperadamente às entidades bancárias sem poder retirar seu dinheiro. O país viveu dois dias de extrema violência, com vários feridos e mortos. E a aliança eleitoral entrou em colapso juntamente com a estabilidade econômica e política.
No espaço de alguns dias, cinco presidentes se sucederam, e finalmente em 2003 os argentinos foram novamente às urnas e o peronista Néstor Kirchner assumiu a presidência. A partir desse momento, o kirchnerismo governou durante doze anos, os últimos oito com Cristina Fernández de Kirchner (CFK) à frente. Desde 2003, o peronismo foi novamente capaz de capitalizar em condições internacionais vantajosas, com preços exorbitantes de commodities, o que resultou em um influxo maciço de recursos para os cofres do Estado. Assim, o governo de Néstor Kirchner conseguiu estabilizar e fazer crescer a economia argentina, enquanto sua administração e a da CFK foram tecidas em uma teia de corrupção que ainda está sendo investigada e processada sem os julgamentos correspondentes. Por sua vez, a última administração de CFK mostrou taxas significativas de inflação e pobreza que chegaram a 30%.
Em 2015, a coalizão opositora “Cambiemos”, formada por Pro, UCR e Coalición Cívica, conseguiu vencer nas urnas, trazendo Mauricio Macri, do Pro, para a presidência da nação. A coalizão eleitoral, entretanto, não conseguiu se tornar uma coalizão governante e o Pro hegemonizou o poder durante os quatro anos. A gestão de Macri resultou em uma crise inflacionária significativa, um enorme aumento da dívida externa e um aumento da pobreza que subiu para 36%. E a coalizão desde 2019 renomeada Juntos pelo Cambio, continua hoje a lutar por posições futuras para 2023, em meio a uma grande crise sofrida pelos cidadãos argentinos.
Finalmente, o atual governo peronista da Frente de Todos, eleito em 2019, também não conseguiu colocar a recuperação do país no caminho certo, e sua liderança política está cada vez mais desarticulada. A economia continuou a deteriorar-se, e assim registramos mais de 50% de inflação anual e quase 45% de pobreza, no contexto de uma pandemia que também foi muito mal administrada. Em meio a todas essas dificuldades, há lutas internas entre as alas mais cristinistas ou mais albertistas, e até mesmo o peronismo mais peronista é consciente que essa frente foi formada expressamente por decisão da Vice-Presidente, CFK, que tinha péssimas relações com o atual presidente, Alberto Fernández, mas que precisava de um peronista “moderado” para atrair votos e continuar ocupando um lugar de poder a fim de sair ilesa dos numerosos casos penais que incriminam a ela e seus filhos.
Cruzando o Rio da Prata, no Uruguai, uma coalizão, a Frente Amplio, governou de 2005 a 2020. Do outro lado dos Andes, no Chile, uma coalizão, a Concertación, governou de 1990 a 2010. Na Argentina, as coalizões eleitorais não parecem poder se constituir em coalizões de governo, mas prima o oportunismo, a mesquinhez e a hegemonia ou domínio de algumas forças sobre outras, junto a gestões de governos abaladas e incompetentes.
*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima
Autor
Cientista política e professora da Universidade de Buenos Aires. Mestre em História Econômica pela mesma universidade. Colunista do Perfil, La Nación, La Ribera Multimedio, Observatorio de Seguridad, Economía y Política Iberoamericana, entre outros.