O MAS (Movimiento al Socialismo) acelerou a competição pré-eleitoral na Bolívia desde Lauca Ñ (pertencente ao município de Shinahota, em Cochabamba) por meio de seu congresso partidário: Evo Morales foi ratificado como chefe nacional e declarado como único candidato para as eleições presidenciais, e Luis Arce foi expulso. Esse acontecimento político-partidário foi considerado ilegal e inorgânico pelos apoiadores do presidente boliviano, mas, para os seguidores do líder indígena, sua lealdade e convicção lhe dão a legitimidade necessária fundamentada em um estatuto que lhe confere legalidade. Além disso, marcou a agenda dos demais aspirantes à presidência.
Vejamos o contexto em que esse congresso está ocorrendo. Do ponto de vista econômico, a Bolívia está passando por uma situação complicada, algo que se reflete no aumento do preço do dólar no mercado não oficial. Isso gerou incertezas e emoções negativas que são difíceis de reverter a curto e médio prazo. Embora o ministro da economia tenha insistido que a compra e a venda se normalizaram (taxa de câmbio fixa de 6,96 bolivianos por dólar), para muitos comerciantes (empregos informais) a situação continua irregular.
Quanto ao contexto social, a taxa de informalidade na Bolívia é maior do que na Nicarágua, no Paraguai e em El Salvador. De acordo com dados oficiais de junho deste ano da Fundação Jubileu, 76 de cada 100 pessoas empregadas com mais de 14 anos de idade não estão inscritas em um tipo de sistema de seguridade social que lhes ofereça benefícios como aposentadoria e assistência médica.
Com relação à situação política, a oposição ao governo nacional é ideologicamente diversa, mas tem o antimassismo como fator comum. Entretanto, do ponto de vista eleitoral, esteve e continua sendo atomizada. Sua limitada capacidade de construir uma frente ampla com um projeto de sociedade que capitalize esse fator comum os reduziu a uma minoria no Parlamento por mais de uma década e sem a possibilidade de conter as derivas autoritárias do Poder Executivo. Por enquanto, parece que o comportamento político-eleitoral egoísta, sem convicção ideológica nem paixão identitária dos opositores partidários, continuará vigente no processo pré-eleitoral até 2025.
A deriva autoritária do presidente com a oposição partidária e regional é um aspecto que não deve ser negligenciado. As detenções preventivas (arbitrárias) de Luis Fernando Camacho (governador de Santa Cruz) e Jeanine Áñez, entre outros presos políticos, são representativas da debilidade institucional e do retrocesso democrático no país.
A principal divisão entre Arce e Evo é a crescente desigualdade de recursos estatais entre as facções que eles representam. O Estado central tem mais de meio milhão de funcionários públicos sob o comando do poder executivo. Esse dado ilustra os incentivos materiais, de poder e de status que o Presidente Arce gerou nos agentes individuais e coletivos desde novembro de 2020, herdeiro dos incentivos materiais concedidos durante as gestões de Morales.
Os atores coletivos que apoiam Arce estão agrupados no chamado Pacto de Unidade. Basicamente, estão estruturados em torno de três organizações-matriciais de origem indígena e camponesa consideradas pelo presidente como “proprietárias” do instrumento político: a Confederação Sindical única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), a Confederação Nacional de Mulheres Camponesas Indígenas da Bolívia “Bartolina Sisa” e a Confederação Sindical de Comunidades Interculturais Originárias de Bolívia (SCSIOB). O quarto agente coletivo (que não é uma parte orgânica do Pacto de Unidade) é a Central Obrera Boliviana (COB), de origem popular.
Em 17 de outubro, será realizada uma reunião de todos esses agentes coletivos e das massas burocráticas na cidade de El Alto para “definir o redirecionamento, a reorganização e a reestruturação do instrumento político e o processo de mudança”. Esse comício tem como objetivo mostrar as forças sociais articuladas que apóiam Arce, estruturalmente distantes de Morales, mas ideologicamente próximas ao MAS.
Por sua vez, a facção evista é composta fundamentalmente pelo setor dos plantadores de coca (Chapare) e pelos dirigentes (paralelos) do Pacto de Unidade. Eles são a base emocionalmente extremista e ideologicamente radical do MAS. Vários representantes sociais e profissionais leais a Evo foram excluídos da administração de Arce. Na Assembleia Plurinacional, várias leis foram paralisadas devido à intensa disputa entre os parlamentares arcistas e evistas, o que impede que o presidente tenha maioria absoluta.
Em suma, o congresso em Lauca Ñ acelerou o divórcio entre Arce e Evo, intensificou a clivagem na administração pública, gerou maior distanciamento no Parlamento entre as várias facções e dividiu as águas entre os setores populares, camponeses e indígenas: orgânicos (arcistas) versus militantes (evistas).
Nessa clivagem, Arce tem uma vantagem coercitiva sobre Evo, pois o judiciário desempenha um papel estratégico que lhe é favorável. O amparo constitucional, apresentado por Felipa Montenegro, representante dos Bartolinas (agente coletivo que apoia o presidente), é uma ação legal que pretende que a convocação do congresso seja declarada ilegal. Uma situação jurídica que possivelmente será resolvida em 23 de outubro.
Após o congresso, o debate entre as facções evistas e arcistas possui como eixo central a legalidade/ilegalidade e legitimidade/ilegitimidade do evento partidário. No momento MAS está nas mãos de Evo, mas os agentes coletivos que apoiam Arce mantêm a batalha no campo jurídico para recuperar o instrumento do qual se consideram donos.
Arce e Evo representam continuidade, não mudança. Ambos exerceram a cooptação como mecanismo de dominação sobre os agentes coletivos que compõem o Pacto de Unidade: a força social na qual se baseia a estratégia discursiva de ambos os líderes quando apelam ao povo para decidir em seu nome.
O Pacto de Unidade e o COB podem ser definidos como associações de interesse porque buscam apenas dar continuidade aos benefícios estatais recebidos por seus membros. São incentivos materiais, de poder e status que não geram uma mudança disruptiva para o bem público; são sujeitos do mecanismo de cooptação.
Por enquanto, Evo retorna à arena eleitoral e Arce é expulso do MAS – no caso de Morales, o primeiro mandatário se expulsou porque desistiu de participar de seu congresso nacional – mas é inquestionável que ele concorrerá à presidência pela segunda vez. Ambos representam a continuidade de um projeto político em processo de ruptura. Ambas as facções precisam manter a cooptação sobre as associações de interesse, a coerção sobre seus opositores e o consentimento de seus eleitores.
Apesar da grave disputa pré-eleitoral no interior do mais importante partido político da Bolívia no século XXI, de acordo com o contexto socioeconômico, o processo de mudança é um sofisma.
Autor
Cientista político. Membro do Centro de Pesquisa Política da Faculdade de Direito da Universidad Autónoma Gabriel Rene Moreno (Santa Cruz de la Sierra). Publicou o ensaio "Rebelión y Pandemia". Proceso político-electoral en Bolivia 2019-2020" Edited by Plural.