A figura da primeira-dama é um dos muitos temas que definem os novos governos na América Latina. Diferentes regimes políticos expressaram posturas diversas em relação ao alcance dessa figura, que tradicionalmente tem sido ocupada pela esposa do presidente, embora, em alguns casos, também tenha sido ocupada pelas irmãs ou filhas dos presidentes. Em algumas ocasiões, essa questão é abordada de maneira explícita, enquanto em outros casos ela é delineada ao longo do tempo ou no decorrer do exercício do poder. Dada a ausência de normas específicas que regulem seu desempenho, as opções para esse papel são variadas e numerosas. A primeira-dama começou como acompanhante do presidente, que participava apenas de algumas reuniões e viagens presidenciais, e como anfitriã da casa governamental. Mais tarde, isso incluiu sua participação em alguns trabalhos de caridade, como visitas a hospitais, escolas e asilos. Finalmente, o papel se tornou mais político, e as primeiras-damas podem promover programas ou políticas sociais e incluir temas na agenda pública. Para isso, algumas contam com um escritório, orçamento e funcionários dentro da presidência institucional. Algumas primeiras-damas têm até mesmo desempenhado um papel equiparável ao do presidente, embora não tenham sido formalmente eleitas para ocupar tal cargo, gerando uma liderança dual que não é isenta de controvérsias.
Algumas administrações têm procurado fortalecer e expandir o papel da primeira-dama. Um caso recente é o de Verónica Alcocer, esposa do Presidente Petro na Colômbia, que exerce forte influência no governo e foi nomeada embaixadora em missão especial para representar o país em atividades internacionais. E há outros casos em que a figura da primeira-dama foi limitada ou eliminada, como ocorreu no Equador (2007), Paraguai (2013), México (2018) e Chile (2022). No entanto, na maioria das vezes, essas mudanças não passaram de declarações de intenção, que foram atenuadas no mesmo governo ou restabelecidas no mandato presidencial seguinte, já que não foram acompanhadas de mudanças institucionais, com exceção do caso do Chile, que incluiu reformas importantes.
Gabriel Boric e sua então parceira Irina Karamanos decidiram realizar uma reforma estrutural para modificar a institucionalidade da primeira-dama. Nos primeiros dias de governo, foi anunciado que esse cargo seria redefinido, após críticas da oposição (por não serem casados) e de grupos feministas da mesma coalizão que consideravam o papel extemporâneo, somado a um contexto de forte questionamento à elite política e às instituições existentes por parte dos cidadãos. No final de 2022, e após um ano de governo, a Diretoria Sociocultural da Presidência, chefiada pela primeira-dama, foi fechada e suas sete fundações foram distribuídas entre diferentes ministérios. Essa inovação institucional marcou um ponto de inflexão na evolução do cargo desde o retorno da democracia no Chile e o consequente incremento das funções assumidas. A eliminação permanente da estrutura existente provocou uma mudança de longo prazo no panorama institucional.
Na Argentina, terra de Eva Perón, reconhecida como a figura por excelência do impacto político que uma primeira-dama pode ter, esse papel assumiu diferentes faces desde o retorno à democracia. Desde a tentativa de Raúl Alfonsín de reduzir seus títulos honoríficos, solicitando que ela fosse chamada simplesmente de “sua esposa”, até Cristina Fernández, que procurou se apresentar como a primeira cidadã. Vale ressaltar que Fernández tinha experiência legislativa, o que, juntamente com uma estratégia eleitoral de rodízio com seu marido, serviu de base para sua candidatura e posterior presidência em dois mandatos consecutivos.
Essas mudanças não excluem os papéis estritamente formais desempenhados pelas esposas de Fernando De la Rúa e Mauricio Macri, com menção especial a esta última. Juliana Awada se destacou por sua participação ativa, impecável e glamourosa em eventos protocolares, embora sem uma dedicação específica a causas sociais, exceto por algumas visitas isoladas ao sopão Los Piletones. A última primeira-dama argentina, Fabiola Yáñez, companheira de Alberto Fernández, teve um acentuado interesse em se envolver em diversas tarefas sociais e em fazer parte do grupo ALMA, que reúne algumas das primeiras-damas latino-americanas com um relacionamento singular com o Vaticano. Quem participará desses encontros na nova administração?
Seguindo a marca deixada por Eva Perón na política argentina, todos os governos foram obrigados a definir o papel da esposa do presidente. O recém-empossado presidente da Argentina, Javier Milei, não foi exceção e estabeleceu uma definição acerca do papel de sua companheira, a renomada artista Fátima Flórez. Em suas declarações, Milei expressou que o mais apropriado seria cancelar a designação de Flórez como primeira-dama, argumentando que não seria justo privar a população de uma artista excepcional como sua atual companheira. No entanto, em uma entrevista a um jornal, a artista ressaltou que sempre manteve um interesse genuíno pela caridade e por “fazer o bem”, uma motivação que a acompanhou durante toda a sua vida, retornando a uma visão altamente tradicional sobre o desempenho esperado da esposa de um mandatário. Como confirmação dessa afirmação, Flórez foi recentemente ao refeitório Los Piletones, que simboliza o epicentro da ajuda social macrista e é administrado por Margarita Barrientos, uma figura muito próxima ao ex-presidente da nação e uma eleitora declarada de Javier Milei.
A presença de Fátima Flórez, uma popular artista loira conhecida por suas imitações de Cristina Fernández, provocou estranhas comparações com a histórica dupla Perón-Evita, com base unicamente no passado artístico compartilhado pelas duas mulheres. A relação amorosa entre Flórez e Milei tornou-se pública durante a campanha eleitoral, quando o candidato à presidência enfrentou críticas por não ter uma parceira, uma família, e por seu relacionamento próximo com sua irmã e até mesmo com seus cães, a quem ele denomina “meus filhos de quatro patas” e que estão imortalizados no bastão presidencial. A atraente Fátima Florez, de certa forma, procurou dissipar qualquer indício de dúvida sobre a masculinidade do candidato. Além disso, ela contribui para consolidar a imagem de Milei como um ” macho forte com coragem”, uma característica típica de lideranças populistas, as quais, de acordo com várias observações, Javier Milei estaria se aproximando. Esse fenômeno reforça a narrativa construída em torno de sua figura, destacando aspectos simbólicos que se conectam a determinados padrões de liderança na história política.
A Argentina atravessa um período de intensa crise econômica, acompanhada de uma tentativa de transformação cultural apoiada pela promulgação de um extenso decreto de necessidade e urgência (DNU) e de uma lei omnibus, dos quais nenhum aborda a questão da primeira-dama. Embora se possa argumentar que as prioridades do país estão concentradas em outras áreas, ambos os regulamentos contêm numerosos assuntos secundários, entre os quais também poderia ser incluída a discussão sobre o papel que desempenha a companheira do presidente.
Embora na Argentina ainda seja prematuro determinar as atribuições relacionadas às funções que a figura da primeira-dama poderia assumir, é intrigante refletir sobre a negação inicial e o cancelamento de seu papel, caracterizado por Milei como “tilinguería”. É relevante ressaltar que ele havia afirmado anteriormente que sua irmã, Karina, uma peça-chave na estrutura política que o levou à presidência e a quem chama de “El Jefe” (o chefe), seria a pessoa que ocuparia esse papel. No entanto, ela assumiu espaços formais e regulamentados dentro do poder executivo ao assumir o comando da Secretaria Geral da Presidência após a revogação de uma norma que proibia os parentes do presidente de ocupar cargos no governo. Karina expandiu consideravelmente sua influência em seis áreas estratégicas da presidência, sem deixar de lado a atenção pessoal do presidente. Suas responsabilidades vão desde o gerenciamento da dieta de perda de peso do presidente até as reformas na Quinta de Olivos presidencial. Além disso, ela o acompanha em todos os eventos e viagens, seja para a base argentina na Antártica ou para os Estados Unidos. Em algum momento, ela se tornou o poder por trás do trono, cuidando da assinatura do presidente e de suas costas. Karina faz parte do complexo e diversificado mundo feminino que cerca Milei, que foi acusado de misoginia. Para refutar essas acusações, ele começou a aparecer em público cercado de mulheres, algumas das quais ocupam cargos importantes em seu governo.
A primeira-dama é um ator político e tem muito simbolismo a nível nacional e internacional. Por estar em uma zona cinzenta não regulamentada e não responsável dentro do governo, ela pode atuar de diferentes maneiras. A disparidade de gênero na ocupação de cargos executivos também significa que o papel de acompanhante é quase exclusivamente reservado às mulheres. Casos de primeiros cavalheiros, se é que podem ser chamados assim, são muito raros. É um desenvolvimento significativo o fato de haver um questionamento e um debate sobre o papel das primeiras-damas a partir de diferentes ideologias e por diferentes motivos: Milei, um liberal libertário, e Boric, um social-democrata comprometido com uma perspectiva de gênero em seu governo. Portanto, as mudanças feitas podem influenciar outros países da região e também são um sinal do papel das mulheres, tanto para as parceiras dos presidentes, as quais buscam ter autonomia e agência própria sem deixar de ser a parceira do presidente, quanto para as mulheres na sociedade.
Autor
Doutora em Ciência Política. Pesquisadora Principal do Conicet. Professora da Universidade Nacional de Tres de Febrero e membro da Rede de Cientistas Políticos. Sua pesquisa se concentra no peronismo clássico, na liderança de Eva Perón, em organizações de mulheres e nas primeiras-damas peronistas.
Doutora em Ciência Política. Pesquisadora associado do Instituto GIGA de Estudos Latino-Americanos da Alemanha e membro da Rede de Cientistas Políticos.