Na última década, o Brasil vem perdendo protagonismo regional. Esse movimento foi acentuado nos anos mais recentes. Ao mesmo tempo, vários presidentes tentaram ocupar o vazio deixado pela omissão brasileira. Todos fracassaram. Seria diferente com o uruguaio Luis Lacalle Pou?
Em 2017, o peruano Pedro Pablo Kuczynski propôs a criação do Grupo de Lima para tratar da crise da Venezuela. Em 2018, o colombiano Iván Duque decidiu abandonar a Unasul em sua primeira semana de governo. Em 2019, o chileno Sebastián Piñera reuniu outros seis presidentes da região para criar o Fórum Prosul com o objetivo de substituir a Unasul.
Os brasileiros Michel Temer e Jair Bolsonaro não se envolveram diretamente em nenhuma dessas iniciativas. Nos três casos, os resultados concretos após alguns anos ficaram muito aquém do voluntarismo presidencial.
O Grupo de Lima tornou-se inócuo depois da aventura venezuelana do autoproclamado Juan Guaidó. Alguns presidentes eleitos mais recentemente como o argentino Alberto Fernández e o boliviano Luis Arce e candidatos ao posto como Andrés Arauz, que passou ao segundo turno em primeiro lugar no Equador, têm chamado à reestruturação da Unasul. O Fórum Prosul fracassou ao não conseguir apresentar resultados na concertação regional, nem sequer para coordenar esforços para enfrentar os efeitos da pandemia na saúde pública; Bolsonaro não participou de nenhuma das três reuniões virtuais do Prosul organizadas pelo Chile em 2020.
Agora parece ser a vez do Uruguai, liderado por Lacalle Pou, assumir o protagonismo.
A agenda uruguaia
Diante do quadro de desintegração econômica e fragmentação política que predomina na América do Sul, o presidente do Uruguai recebeu Alberto Fernández em Colônia do Sacramento em novembro passado. Neste mês de fevereiro visitou Bolsonaro para um almoço no Palácio da Alvorada e convidou o paraguaio Mario Abdo na terça-feira de carnaval para uma conversa em Punta del Este.
Houve traços comuns em todos os encontros. Informais, sem declarações oficiais ou comunicados conjuntos das chancelarias. As agendas das três conversas presenciais foram pautadas pelo Uruguai. Acompanhada de questões menos importantes de interesse dos interlocutores, a flexibilização do Mercosul sempre foi o tema principal.
A agenda uruguaia de flexibilizar o Mercosul é um eufemismo para acabar com a tarifa externa comum (TEC), que obriga a que todos os países do bloco cobrem a mesma alíquota de importação de produtos de fora do bloco. A TEC é o instrumento que garantiu grande crescimento do comércio intrabloco entre 1991 e 2011, mas que perdeu fôlego pela crise industrial no Brasil e Argentina, fragmentação política e aumento da presença chinesa. A alta demanda chinesa por produtos primários do bloco garantiu divisas abundantes nos últimos anos e anestesiou o esforço exportador industrial dos países membros.
Deixar cada membro negociar individualmente
No Uruguai, a flexibilização do Mercosul parece ter legitimidade interna. Afinal, entre 2015 e 2019, esse país apresentou crescimento econômico enquanto Argentina e Brasil estavam estagnados. Lacalle Pou defende que o Mercosul abandone a TEC e que cada sócio negocie individualmente acordos comerciais com terceiros países ou blocos.
Entre os quatro fundadores do Mercosul, o Uruguai é o único que tem fronteiras apenas com países originais do bloco e a sua economia era a mais integrada com os vizinhos antes do Tratado de Assunção de 1991. O país manteve sua tradição de não alinhamento automático com nenhum dos dois vizinhos. A própria independência do Uruguai pode ser entendida como funcional ao distensionamento entre Brasil e Argentina. Agora parece promover seu afastamento de ambos, o que seria um movimento inédito.
A senha de Lacalle Pou já fora dada em seu discurso na reunião virtual do Mercosul de julho de 2020 que transmitia a presidência do bloco do Paraguai para o Uruguai. Ele concentrou seu discurso na defesa de relações “desideologizadas” com a China e na importância da especialização agrícola das economias da região. A reação foi de baixa intensidade. As atenções estavam voltadas para o Acordo Mercosul-União Europeia, cujas negociações se arrastam por mais de duas décadas, não teve nenhum avanço no último ano e perdeu espaço nas preocupações presidenciais.
O comércio exterior uruguaio é cada vez menos sul-americano e cada vez mais chinês. Em 2000, 49% das exportações do Uruguai tinham como destino os países vizinhos da América do Sul, após uma década de forte crescimento do comércio dentro do Mercosul. Em 2010, o patamar da América do Sul no total das exportações uruguaias estava em 39,4%; em 2020, o nível ficou abaixo de 25%. Há dez anos, o Brasil comprava 24% das exportações uruguaias e a China apenas 5%. Hoje, a China compra sozinha 28% do que o Uruguai vende e o Brasil apenas metade disso (14%).
A China anestesiou a integração regional
O dinamismo chinês anestesiou a integração regional. Para o Brasil, comercialmente, o Uruguai também representa cada vez menos. Se em 2018 o Brasil teve um superávit de 1,8 bilhão de dólares, em 2020 foi de apenas 600 milhões. As exportações brasileiras para o Uruguai caíram 40% em dois anos.
As exportações uruguaias para a China são concentradas em apenas em dois produtos agropecuários, carne e soja, em contraste com as exportações industrializadas e diversificadas para o Brasil e a Argentina. O comércio intrarregional é mais acessível às pequenas empresas e gera mais e melhores empregos. A especialização propagada pelo presidente uruguaio implica em desindustrialização e menos empregos vinculados ao comércio exterior.
É melhor negociar em conjunto
Lacalle Pou acerta em fomentar o diálogo regional e em se preocupar com os custos de uma política ideologizada em relação à China, principal parceira comercial do Mercosul. Erra, porém, ao entender que o Uruguai sozinho negociará de forma mais favorável com parceiros extrarregionais.
A tendência de construção de blocos regionais, ainda que com instabilidade nos últimos anos, continua se fortalecendo. Em toda parte, os custos de deixar um acordo regional é muito maior do que o de se manter nele.
O resultado concreto da flexibilização do Mercosul seria mais especialização produtiva e maior interdependência com a China. Mesmo com a China o Mercosul poderia negociar melhor em conjunto. Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai respondem juntos por 75% das importações totais de soja da China, além 37% das carnes e 25% da celulose. Todos esses produtos muito intensivos em terra e água. A China depende do Mercosul para garantir o aumento de seu consumo de proteína, mas, por inabilidade política, até agora o bloco não tirou vantagens indiretas dessa situação.
O diálogo político é especialmente importante no Mercosul porque boa parte de seu comércio é administrado. Quando os ministros da economia de Brasil e Argentina não conversam, as trocas entre os dois países diminuem significativamente. Parte da queda do comércio intrarregional é fruto da fragmentação política. Há outros instrumentos de integração regional que deveriam ser modernizados, como o Convênio de Créditos Recíprocos da ALADI, cuja sede também está em Montevidéu.
No atual quadro de desintegração econômica e fragmentação política da América do Sul, o Uruguai pode parecer uma ilha de prosperidade em um mar de instabilidade. Mas a sua estabilidade no médio prazo será comprometida pela falta de harmonia entre Argentina e Brasil. Lacalle Pou pode conseguir colocar Alberto Fernández e Jair Bolsonaro pela primeira vez em uma mesma mesa, mas dificilmente teria o mesmo êxito tratando com economias 200 vezes maiores do que a sua. O Uruguai teria muito mais a ganhar viabilizando o bom diálogo entre seus dois vizinhos e ajudando a construir uma agenda de consenso na América do Sul do que negociando sozinho com China, Estados Unidos ou União Europeia.
Foto de Esteban Collazo
Autor
Economista. Trabalha no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA (Brasília). Foi Diretor de Assuntos Econômicos da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL). Doutor em Integração Latino-Americana pela Univ. de São Paulo (USP).