Cenário: uma prisão argentina no início dos anos 80. Obscura pela prisão, obscura pelo sórdido, obscura pelo contexto, obscura pelas denotações, obscura pela atmosfera tormentosa. Horário de visitas. De um lado das grades, o que está livre, Molinuevo; do outro, seu amigo durante décadas e durante décadas sócio numa fábrica de kits de primeiros socorros, Bonifatti.
Conversam. O livre, com a melancólica alegria dos argentinos livres. O preso, com a resignação de quem entendeu que os pecados devem ser pagos de alguma maneira; e embora os seus – a soberba, adultério – costumam ser pagos com dor, humilhação e orgulho, a vida decidiu cobrá-los de forma simples e cruel atrás das grades.
Aprecia-se o reflexo de um relâmpago. Segundos depois, os trovões correspondentes fazem um estrondo. Molinuevo, o livre, sentencia: “Com uma boa colheita seremos todos salvos”.
Andrés Rivarola, pesquisador do Instituto Nórdico de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Estocolmo, soube captar toda a potência daquela frase; as pistas idiossincráticas por detrás dela. E, não menos importante, a sua retumbante atualidade. De fato, conserva seu valor intacto apesar dos 40 anos transcorridos desde que Plata Dulce chegava aos cinemas. O conteúdo destas linhas é de minha exclusiva responsabilidade, mas devo isso ao Professor Rivarola por ter me colocado no trilho desta mina de ouro contida em apenas sete palavras.
Em todo o caso, por que falar de tudo isto precisamente agora? Porque os oceanógrafos da política latino-americana já se colocaram a proclamar a chegada de uma nova Maré Rosa: Fernández na Argentina, Boric no Chile, Arce na Bolívia, Castillo no Peru, possivelmente Petro na Colômbia, provavelmente Lula no Brasil… Pregão que é muito interessante como o início de análise; o problema costuma ser também seu final. O assunto começa com um bom título, e acaba com nada mais do que um bom título. Como se a coincidência de presidentes com características ideológicas semelhantes implicasse algo por si mesma. Como se estivesse linearmente atada a umas consequências previsíveis, inclusive irrevogáveis. E evidentes; tão evidentes que não faria falta nomeá-las. Por conseguinte, de fato, não são nomeadas. Grande negócio para quem vive de criar títulos; péssimo horizonte para quem aspira a entendê-los.
Dito em outras palavras: pode ser que ao longo do tempo um número de mandatários com propostas convergentes concordem; e depois, o quê? Que diferença faz se são três, sete ou quinze? Por acaso essa concordância incrementa espontaneamente o vigor com que perseguem seus objetivos?Será que cada presidente co-governará em todos os demais países que traçarem uma linha comum? Existe sequer um plano, um documento, um roteiro para uma ação conjunta? E se não houver, se a coincidência não se cristalizar numa constelação, de que serve isso como um mero asterismo?
De todas as anteriores, fiquemos com a pergunta inicial, que é a mais aberta: e então, o quê? Assim, tal como Molinuevo confiou tudo a essa única colheita, os publicistas da Maré Rosa 2.0 parecem confiar tudo ao asterismo: “Com uma nova Maré Rosa seremos todos salvos”.
É a cultura do milagre: que uma chuva abençoe nossa colheita e nos torne ricos de uma vez por todas; que um caudilho acerte magicamente o nosso destino político; que uma conjuntura internacional luminosa multiplique o preço do nosso petróleo, da nossa soja, do nosso lítio; que uma Maré Rosa corrija para sempre o curso da nossa economia, o status da nossa identidade regional pisoteada e o nosso peso geopolítico específico no cenário global. Isso não é nada.
Não é que não se saiba exatamente como operará a nova Maré Rosa para atingir os seus objetivos; é que nem sequer parece ter interesse: o que importa é que coincidam muitos presidentes do mesmo viés político. Como se o importante fosse exibir o poder simbólico da quantidade, e a articulação efetiva desta capacidade fosse irrelevante.
Façamos, contudo, três suposições que nos permitam saltar diretamente para o fim de uma Maré de êxito de dez ou quinze anos.
Primeira suposição: que os anunciadores da Maré 2.0 têm via livre para um otimismo integral porque não tomaram nota do que ocorreu com a versão 1.0. Dos obstáculos encontrados pelos seus presidentes membros, tanto dentro como fora de cada país. Da falta de capacidade e da falta de vontade política. Do aparecimento de efeitos colaterais inesperados que obrigaram a paralisar certas reformas, a reverter outras, a limitar terceiras ao discurso e maquiagem. Da ambição de poder, disputas internas, traições e interesses – que existem em torno dos presidentes da Maré Rosa como em torno de qualquer outro chefe de Estado. Da distância entre as promessas de campanha e a política real. Suponhamos, então, que não tendo notado nada disto, é possível receber a nova Maré com as expectativas intactas.
Segunda suposição: que, uma vez instalados no poder, todos os presidentes da nova onda realmente tiveram interesses comuns, e que conseguiram chegar a acordos concretos para os materializar.
Terceira suposição: após dois ou três quinquênios de Maré Rosa II, as economias afetadas florescem, as identidades nacionais e regionais se erguem orgulhosas perante o mundo, e a América Latina tenha se transformado em uma peça chave do tabuleiro político global.
O que aconteceria depois desses dez ou quinze anos? À medida que nos aproximamos da resposta, ficamos com cara de Molinuevo. Um pequeno desvio para explicar.
O normal, o esperado, o desejado numa democracia é que após dois ou três governos de um determinado cunho político, a alternância leve ao poder a um de visão oposta. Use os rótulos que quiser: esquerda e direita, progressismo e conservadorismo, socialismo e (neo)liberalismo… em um sistema democrático, eles revezam-se no exercício do poder. Há uma alternativa, naturalmente: que em vez de Molinuevo, tenhamos a cara de Daniel Ortega. Nesse caso, pode ser que um presidente permaneça no poder de forma vitalícia e que suas políticas se mantenham intactas.
Mas no caso das democracias liberais, que é a que nos interessa, a alternância no poder permite a radical transformação, revogação e retração das políticas do governo anterior. Só há um mecanismo para evitar que isto aconteça: que as medidas mais importantes, aquelas que definem o futuro nacional, sejam acordadas pelos principais grupos políticos do país.
Que as principais questões sejam abordadas através de políticas estatais que serão respeitadas pela oposição quando deixar de ser oposição. Que serão respeitados porque não foram impostas pela força da maioria num dado momento, mas porque ela – a oposição – participou na sua elaboração. Que serão respeitadas porque estas regras também incluem alguns dos seus pontos de vista, algumas das suas exigências. Que serão respeitados pelo caro que sairia, uma vez no poder, dinamitar as grandes pontes construídas no passado.
Começa o leitor a ter uma ideia de como é a cara de Molinuevo? É a cara de “Com uma boa Maré Rosa podemos nos salvar todos”. O rosto de alguém que espera que o que quer que a nova Maré Rosa faça, ninguém mais desfaça.
Mas isso não pode ser, e além disso é impossível: esperar que uma Maré Rosa nos salve é tão louco como esperar o faça uma Maré Azul, Cinza ou Verde. Não é uma questão de cor política; o problema consiste em esperar que estes governos imponham determinadas políticas, em vez de esperar que se chegue a acordos de longo prazo com o resto do espectro político nacional. Se o primeiro acontecer, o resultado está escrito: tais medidas durarão o mesmo tempo que o governo.
Como diria um oceanógrafo: não esqueçamos que uma corrente de fluxo, sempre, sempre, sempre é seguida por uma corrente de refluxo.
*Tradução do espanhol por Giulia Gaspar.
Autor
Politólogo e Doutor em Ciência Política pela Universidade de Salamanca. Especializado na sucessão do poder e na vice-presidência na América Latina.