Uma região, todas as vozes

L21

|

|

Leer en

A democracia latino-americana sem Trump

A vitória de Joe Biden na corrida presidencial contra Donald Trump é uma boa notícia para a democracia dos EUA, mas uma notícia ainda melhor para a democracia latino-americana.

Cientistas políticos demonstraram que o papel dos Estados Unidos é importante para compreender as transições e rupturas democráticas na América Latina. De forma direta ou indireta, durante a Guerra Fria, os Estados Unidos catalisaram golpes de Estado e ditaduras em toda a região. Da mesma maneira, após a queda do Muro de Berlim na década de noventa, os Estados Unidos dirigiram sua influência diplomática e seus recursos para facilitar as transições democráticas em vários países latino-americanos.

Nem todas as rupturas democráticas são uma consequência das ações dos EUA e nem todas as transições para a democracia tiveram a ajuda do gigante do norte”

Nem todas as rupturas democráticas são uma consequência das ações dos EUA e nem todas as transições para a democracia tiveram a ajuda do gigante do norte. Entretanto, a atitude normativa de seus governantes frente à democracia é um fator importante na análise da ascensão e queda de ditaduras e democracias na região.

Donald Trump é um líder com valores autoritários: para ele, a democracia não tem um valor intrínseco. Sua agenda política e seus interesses pessoais são sua prioridade e ele está disposto a sacrificar as democracias ou apoiar as ditaduras para alcançá-las.

As consequências de tal atitude tiveram um impacto considerável para os seus vizinhos do sul. Desde 2016, a América Latina tem visto a ascensão de – pelo menos – três presidentes com tendências autoritárias, Jair Bolsonaro no Brasil, Andrés Manuel López Obrador no México e Nayib Bukele em El Salvador, e a consolidação de duas ditaduras, a de Nicolás Maduro na Venezuela e Daniel Ortega na Nicarágua. Não se pode culpar os EUA pela habilidade desses líderes de chegar ao poder, mas o desdém com o qual Trump trata a democracia tornou seu trabalho mais fácil.

Como Hector Silva Avalos aponta, o presidente estadunidense apertou a mão de líderes corruptos e autoritários da América Central em troca de promessas e acordos em temas migratórios. Em 2017, os EUA fizeram vista grossa quando Juan Orlando Hernandez ganhou as eleições em Honduras sob suspeitas de fraude bem documentadas e forneceu, na época, um apoio diplomático essencial para contornar a pressão internacional e os protestos no interior do país.

Os Estados Unidos também ignoraram os avanços autoritários de Bukele em El Salvador. Recusou-se a rejeitar a invasão temporária do legislativo com o exército, as violações dos direitos humanos e o desrespeito do presidente salvadorenho às ordens judiciais.

Na Guatemala, Trump retirou o apoio diplomático à Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala (CICIG). Esta comissão, criada em um esforço multilateral sem precedentes, havia investigado vários casos de corrupção e impunidade de alto nível. Quando as investigações bateram à porta do então presidente Jimmy Morales, o executivo decidiu atacar a comissão e acabar com a iniciativa. Sem o respaldo dos EUA, a comissão não conseguiu resistir à pressão e fechou suas portas em 2019. Dadas as deficiências institucionais da Guatemala, a CICIG estava cumprindo um papel essencial para o desenvolvimento democrático do país.

Estes países não foram as únicas vítimas do Trump. Desde 2016, Nicolás Maduro está consolidado no poder. Enquanto o aprofundamento autoritário na Venezuela se deve em grande parte a fatores domésticos, a desajeitada e míope política externa dos EUA desperdiçou oportunidades preciosas de mudança e gerou condições para solidificar o controle do presidente de facto. Em 2019, aproveitando uma conjuntura muito particular, Juan Guaidó se posicionou como presidente interino. Foi um movimento inteligente que pegou o governo desprevenido e deu à oposição reconhecimento internacional. Guaidó havia conseguido o impossível, catalisar uma oposição fragmentada em torno de uma única estratégia.

Donald Trump ameaçou o governo venezuelano com uma invasão improvável, encorajou a fracassada revolta de abril de 2019 e boicotou as tentativas de negociação da Noruega

Com o apoio dos Estados Unidos e de dezenas de países ao redor do mundo, esta foi uma oportunidade sem precedentes para levar o governo a negociar. Infelizmente, em vez de trabalhar em mecanismos para forçar as negociações (ou seja, neutralizar o apoio de Cuba, Rússia e China e fortalecer as facções moderadas da oposição), Donald Trump ameaçou o governo venezuelano com uma invasão improvável, encorajou a fracassada revolta de abril de 2019 e boicotou as tentativas de negociação da Noruega.

Além disso, Trump instaurou sanções que não serviram para quebrar o governo de Maduro, mas aumentaram a dependência dos venezuelanos em relação ao governo, reduzindo a possibilidade de futuros protestos que poderiam desestabilizá-lo. Além da retórica de guerra para ganhar votos na Flórida, Trump não fez nada para promover a democracia na Venezuela. Dois anos após Guaidó se posicionar como presidente interino, a oposição está ainda mais fragmentada e Maduro consolidou ainda mais o seu controle sobre o país.

Joe Biden não tem as mesmas preferências normativas para a democracia que Donald Trump. Tudo indica que para o futuro presidente a democracia tem um valor intrínseco e vale a pena ter vizinhos democráticos, mesmo que eles discordem dos EUA. Mais importante ainda, Biden deixa a sensação de que para ele a democracia no continente tem um valor estratégico fundamental e que este valor é o que promete mudanças importantes para a região. De Biden podemos esperar não uma política mais (ou menos) dura do que a proposta por Donald Trump, mas uma política mais inteligente.

A corrupção e a impunidade fomentaram a violência que tem levado milhares de centro-americanos a deixar seus países para migrar para os Estados Unidos. Apoiar iniciativas que reduzam a corrupção e a impunidade na Guatemala, El Salvador e Honduras é, portanto, não só normativamente importante, mas um passo fundamental para solucionar os temas de imigração.

Da mesma forma, a ditadura venezuelana ameaça os principais interesses dos Estados Unidos na América do Sul, incluindo temas de segurança e narcotráfico. Acabar com a ditadura não é um problema eleitoral para Biden; é um problema de segurança hemisférica. Fazer cair o regime é mais importante para ele do que parecer “duro” para o ditador.

Embora os latino-americanos geralmente tenham bons motivos para desconfiar da política externa estadunidense, é de se esperar, pelo menos em temas de democracia, que os próximos quatro anos sejam mais favoráveis do que os que acabamos de passar. Não apenas porque Biden – diferente de Trump – valoriza a democracia, mas porque ele tem uma visão mais ampla e estratégica do que significa para os Estados Unidos a presença de regimes democráticos na América Latina.

*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima

Foto de jorgemejia en Foter.com / CC BY

Autor

Otros artículos del autor

Professora de Ciência Política da Universidade de Utah. Doutora em Ciência Política pela Universidade de Notre Dame (Indiana, E.U.A). Suas principais áreas de interesse são instituições e mudanças de regime político na América Latina.

spot_img

Postagens relacionadas

Você quer colaborar com L21?

Acreditamos no livre fluxo de informações

Republicar nossos artigos gratuitamente, impressos ou digitalmente, sob a licença Creative Commons.

Marcado em:

COMPARTILHE
ESTE ARTIGO

Mais artigos relacionados