Há apenas um ano, as Forças Armadas Bolivianas desempenharam um papel significativo ao se tornarem o jogador decisivo que precipitou a saída do então presidente Evo Morales do país após um processo eleitoral tenso e três semanas de alta polarização e agitação. A intervenção militar se limitou a uma breve declaração: “Depois de analisar a situação de conflito interno, sugerimos ao Presidente do Estado que renuncie ao seu mandato presidencial, permitindo a pacificação e a manutenção da estabilidade para o bem de nossa Bolívia”. Desta forma, se recuperava uma função arbitral do exército que, não se deve esquecer, foi tradicional antes do período 1964-1989 quando a instituição militar ocupou o poder em um bom número de países latino-americanos.
A presença armada boliviana sob os holofotes coincidiu com outras semelhantes em um trimestre de grande turbulência nas ruas na região. No Equador, os militares acompanharam o governo em sua transferência de Quito para Guayaquil devido à pressão das massas no palácio Carandolet onde está localizado o Executivo; no Peru, eles posaram em uma foto histórica com o presidente quando ele anunciou a dissolução constitucional do Congresso, convocando eleições para um novo.
Todos estes foram sintomas de gestos irregulares que mostraram um estranho encaixe da corporação militar na ordem política cotidiana”
Pouco depois, em fevereiro deste ano, o Presidente Nayib Bukele invadiu a Assembleia Legislativa com um grupo de militares para repreender seus senhorios e, mais tarde, continuou a fazer todo o possível para impedir o acesso aos arquivos militares relacionados ao massacre de 1981 de 1.000 salvadorenhos em El Mozote. Em quatro ocasiões, o exército salvadorenho bloqueou as inspeções judiciais dos arquivos militares com consentimento presidencial, apesar de terem sido “desclassificadas” por uma decisão da Câmara Constitucional da Suprema Corte de Justiça. Todos estes foram sintomas de gestos irregulares que mostraram um estranho encaixe da corporação militar na ordem política cotidiana.
Ao mesmo tempo, embora com um componente diferente, no Brasil e no México, os dois principais países da região em termos demográficos e econômicos, a presença das Forças Armadas na esfera pública tem se consolidado gradualmente, com características evidentes de protagonismo privilegiado em suas ações.
Assim, no Brasil, o Presidente Jair Bolsonaro, um ex-militar, tem como vice-presidente o general de reserva Hamilton Mourão e sete das pastas ministeriais, que representam um terço do gabinete, também estão nas mãos de militares, assim como seu porta-voz, um general ativo. Mais de vinte áreas da administração, incluindo a petroleira estatal Petrobrás, também são chefiadas pelos militares. Estima-se que hoje um pouco mais de 6.100 oficiais dos três ramos das Forças Armadas ocupam esses cargos, um número que, em 2019, era em torno de 2.700 pessoas (o que significa um aumento em um ano de 120%). Desse número, cerca de 2.000 são oficiais aposentados que foram temporariamente designados ao INSS para ajudar a aliviar o atraso em sua gestão do dia-a-dia.
O Presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO) não deixou de promover o papel do exército na luta contra o crime”
No México, por sua vez, o Presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO) não deixou de promover o papel do exército na luta contra o crime, em linha com a decisão tomada por seu antecessor Felipe Calderón, então amplamente criticado. A novidade, entretanto, é que ele confiou às Forças Armadas a execução de obras civis como a realizada no aeroporto de Santa Lucía, uma antiga base militar que será o novo terminal aéreo, tentando assim aliviar a paralização da expansão do aeroporto da capital. Além disso, no início do mês, a AMLO anunciou a construção de um aeroporto em Tulum (Riviera Maya), também de responsabilidade dos militares. Ele também confiou na engenharia militar para o desenvolvimento de partes substanciais do megaprojeto do trem Maya.
Um último passo nessa direção foi a decisão de abolir 109 contratos fiduciários dedicados ao financiamento de instituições públicas vinculadas à ciência, à cultura e ao esporte, que representavam pouco mais de 3 bilhões de dólares, mantendo os quatro contratos fiduciários do Ministério da Defesa, que valem cerca de 1,5 bilhões de dólares. Estes fundos estão disponíveis principalmente para a compra de equipamentos militares, bem como ativos de aposentadoria, pensões e indenizações, subsídios para filhos e familiares de funcionários presidenciais e militares que tenham falecido em missões de alto risco
Este uso espúrio das Forças Armadas também foi evidenciado quando Evo Morales foi conduzido em um avião militar da Bolívia para o México. Uma concepção antiga e com certos ares românticos do exército como um “povo uniformizado”, nos próprios termos do presidente, em detrimento da administração civil do Estado.
O golpe que a AMLO recebeu devido à detenção nos Estados Unidos do General Salvador Cienfuegos, que era o Secretário de Defesa do governo Peña Nieto, agora acusado de atividades relacionadas ao tráfico de drogas, não parece ter enfraquecido a confiança militar do presidente que descreveu isso como “muito lamentável”. Talvez as palavras do próprio Cienfuegos em dezembro passado ajudem a esclarecer a presença dos militares na política: “Você quer que estejamos no quartel? Vá em frente. Eu seria o primeiro a levantar não uma, mas as duas mãos para que possamos ir e cumprir nossas tarefas constitucionais”. O comando militar estava sugerindo que sua tarefa não era constitucional?
O desmantelamento do Estado em um número significativo de países, a precária administração pública com pouco orçamento e sem ter desenvolvido um serviço público baseado no mérito e na independência, abriram um espaço para os militares que gozam da maior confiança dos presidentes com vocação de liderança. Veem neles uma instituição aparentemente dócil de administrar, mas é sua politização gradual a estrutura de oportunidades de seu maior envolvimento público. Este cenário prevê uma perigosa tendência para a consolidação de expressões autoritárias.
*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima
Foto do Palácio do Planalto em Foter.com / CC BY
Autor
Diretor do CIEPS – Centro Internacional de Estudos Políticos e Sociais, AIP-Panamá. Professor Emérito da Universidade de Salamanca e UPB (Medellín). Últimos livros (2020): “O gabinete do político” (Tecnos Madrid) e em coedição “Dilemas da representação democrática” (Tirant lo Blanch, Colômbia).