Uma região, todas as vozes

L21

|

|

Leer en

A política externa do Brasil no divã

Na psicanálise, o divã serve para que o paciente pense sua identidade, trabalhe as imagens que deseja projetar, mude os papéis que quer desempenhar no mundo e amadureça como pessoa adulta. O sofá conecta o eu do paciente e, da psicanálise aos assuntos internacionais, serve para compreender a identidade e os papéis que a pessoa desempenha nas relações políticas, econômicas, socioculturais e geoestratégicas mundiais. Este não é um artigo teórico, mas uma tentativa de me concentrar na conjuntura crítica que um paciente específico vive: o Brasil. Mesmo assim, devo declarar que me baseio principalmente na suposição de que as elites têm um papel essencial no pensar sobre esse paciente que é o Estado e sua política externa. E essas elites como constituintes do sujeito podem orientar sua ação na direção de uma vida adulta de relativa autonomia, ou em lugar disso a uma relação infantilizada de dependência para com um tutor perene. Por isso, a construção de consensos entre os membros da elite é uma condição fundamental para a projeção de poder internacional.

Qual foi a imagem do Brasil nos últimos anos e como ela mudou desde o julgamento político de Dilma Rousseff? Sob os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), o Brasil liderou a criação de novas instituições de integração regional, defendeu as relações sul-sul, fomentou iniciativas multilaterais e coalizões internacionais como o Fórum IBSA e o grupo BRICS, assim como as conferências de cúpula entre a África e a América do Sul e entre os países árabes e a América do Sul.

A identidade que o Brasil projetava se baseava em três pilares: o foco na América do Sul, sem descuidar da solidariedade para com outros países em desenvolvimento; o bom desempenho econômico e uma ambição política de se adaptar à governança mundial; e a construção de uma democracia  relacionada à inclusão social e reconhecimento dos direitos das minorias. Uma social-democracia do sul, consagrada aos princípios da constituição de 1988. No que tange à política externa, o Brasil desempenhou papel chave na conexão da política interna com a ambição de se inserir no contexto mundial, no qual sua imagem se beneficiou graças a melhoras sociais, políticas, institucionais e econômicas.

Quando o vice-presidente Michel Temer assumiu, depois de um controvertido impeachment de Rousseff, a identidade do país começou a mudar. O novo ministério foi o primeiro totalmente branco, rico e masculino desde a redemocratização. As prioridades da política externa se concentraram em novos acordos comerciais bilaterais, no realinhamento do Brasil com o Ocidente (Estados Unidos e Europa), na abertura do Mercosul e no isolamento da Venezuela. A oitava conferência de cúpula do grupo BRICS terminou sem resultados relevantes para o Brasil. Na ONU, o país ratificou o Acordo de Paris em 2016 e o Pacto Mundial sobre Migração em 2018; ainda assim, ao solicitar admissão pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil se desviou da solidariedade sul-sul e do multilateralismo internacionalista que mantinha anteriormente.

Durante o governo Temer, muitas das decisões foram prejudicadas pela instabilidade política, escândalos de corrupção ininterruptos, baixos índices de crescimento, alta do desemprego, tensões interestatais, a prisão de Lula e o ressurgimento da violência no campo e nas cidades, que caracterizaram a crise institucional e política do país sob o governo dele.

Em outubro de 2018, o candidato de extrema direita venceu as eleições. Paradoxalmente, Jair Bolsonaro se apresentou como político antissistema na tentativa de se distanciar da política tradicional, apesar de sua longa carreira política. Sua campanha mobilizou as redes sociais de maneira inovadora e explorou o uso intenso de notícias falsas. Mas na porção já decorrida de seu mandato surgiram tensões dentro da coalizão formada por militares, segmentos do sistema judicial, igrejas neopentecostais e extremistas de direita. Estes defenderam prioridades estratégicas divergentes no desenvolvimento da infraestrutura, integração econômica, previdência social e reforma das aposentadorias, política externa, transparência e políticas de combate à corrupção. Além disso, foram implementadas formalmente políticas de conservadorismo moral a fim de recuperar o senso de autoridade política, para limpar a esfera pública dentro de uma narrativa que tende a solapar os direitos das minorias e a visão pluralista da democracia. Os adversários políticos (especialmente os esquerdistas e intelectuais) são representados como o inimigo.

Como se pode interpretar uma transformação tão profunda da política externa?”

Como se pode interpretar uma transformação tão profunda da política externa? Hoje em dia, a identidade internacional do Brasil e os papéis projetados nos assuntos internacionais podem estar sofrendo uma mudança radical que os afasta do que foi uma democracia participativa. Com base na ênfase em uma política externa que rompe com o conceito de inserção internacional autônoma, até agora o governo representou a continuidade do golpe institucional de 2016 e intensificou o retorno dos militares a posições chave na administração; o alinhamento com Washington e outros governos de direita na Colômbia, Hungria, Israel e Itália; o abandono de uma política externa autônoma na América do Sul; a opção por narrativas religiosas e mitológicas para interpretar os problemas internacionais contemporâneos como a mudança do clima, a migração, a intervenção militar e o papel da ONU; e a construção de um regime democrático somente nas telas dos televisores.

Para compreender essa mudança, introduzi o conceito de “dilema de graduação”. (Carlos R. S. Milani, Leticia Pinheiro e Maria Regina Soares de Lima, 2017). As potências de segundo nível e não nucleares (como o Brasil) enfrentam um dilema a cada vez que suas elites têm que escolher entre um desenvolvimento autônomo ou dependente; em termos de segurança, entre adesão automática e balanço; quando se cria uma política multilateral, entre alianças tradicionais e coalizões inovadoras e flexíveis (como o Fórum IBSA e o grupo BRICS); em termos geopolíticos e no campo da cooperação para o desenvolvimento, entre a ênfase em norte-sul ou as relações sul-sul. Para isso, é preciso assumir variáveis como as percepções, interpretações e enquadramentos do internacional por parte das elites, que não necessariamente convergem com os papéis nacionais e ambições internacionais.

A coesão entre governo e elites (grupos empresariais, sindicatos, meios de comunicação, a academia e os movimentos sociais) é condição sine qua non para um processo de graduação bem sucedido. Uma das grandes falhas dos governos do PT foi descuidar dessa dimensão. Por exemplo, o Brasil deveria insistir no relacionamento sul-sul e em uma ordem mundial multipolar (anos PT), ou apostar em uma aproximação com o Ocidente sob a hegemonia dos Estados Unidos (política atual)? A opinião pública geral e a maioria das elites tendem a  favorecer mais a segunda opção. Por que o Brasil deveria cooperar com o Haiti e a Guiné-Bissau quando ainda há tantas necessidades em nível nacional? Quais são os benefícios de uma política externa de solidariedade sul-sul?

Desde o surgimento da república, em 1889, os brasileiro estão expostos a uma tradição autoritária e a uma política externa centrada na cooperação com os países ocidentais. Depois do final da Segunda Guerra Mundial, a democracia prosperou até que, em 1964, foi interrompida por um golpe militar. Tanto em 1964 quanto em 2016, as elites puseram em risco a democracia para evitar lidar com reformas estruturais, políticas sociais e os níveis dramáticos de desigualdade. Vincular as variáveis domésticas aos desafios regionais e mundiais é uma ferramenta analítica chave para abordar o “dilema da graduação” como uma contribuição conceitual para compreender o que o Brasil está passando.

Qual é a relação entre o dilema da graduação e o divã? O golpe vem sendo historicamente a alternativa escolhida pelas elites para evitar os dilemas que o sofá pode provocar na graduação do paciente. O dilema no caso do Brasil está vinculado a uma crise de identidade e parece que as elites temem os possíveis efeitos transformadores do sofá. Quando os brasileiros branco se veem no exterior e alguém lhes pergunta sobre sua origem, costumam responder “sou de origem alemã”, ou italiana, japonesa, eslava, espanhola ou portuguesa. Essa é uma das marcas da identidade brasileira, ainda que geneticamente quase todos sejam africanos ou ameríndios.

Outra autoimagem reconstruída através do sofá implicaria aceitar o Brasil como nação “arco-íris”, e assim renunciar ao poder que nega o pluralismo na sociedade. Ainda assim, o cenário atual mostra que a riqueza histórica, cultural e religiosa de séculos de formação nacional deve dar lugar a um projeto neoconservador cuja viabilidade dependerá tanto de apoio nacional quanto de apoio internacional.

Diante da rejeição a enfrentar os desafio do sofá, um cenário possível seria a necessidade de o Brasil redefinir sua participação no grupo BRICS. O Brasil vai se retirar do BRICS ao suspender sua participação na Unasur? Alguns ministros de Bolsonaro já declararam que o BRICS deve se distanciar da geopolítica e se concentrar no investimento e comércio, mas como isso afetará o grupo? Como China e Rússia avaliarão essa mudança? Outro cenário seria  mudar o BRICS. Se o Brasil já não se encaixa, a Turquia poderia transformar o BRICS em TRICS? No futuro próximo, veremos se finalmente se confirmam essas transformações na geopolítica e na economia política do planeta.

Autor

Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisador CNPq. Diretor do Laboratório de Análise Política Mundial, sede Rio de Janeiro (LABMUNDO-Rio). Foi Secretário Executivo da Associação Brasileira de Ciência Política.

spot_img

Postagens relacionadas

Você quer colaborar com L21?

Acreditamos no livre fluxo de informações

Republicar nossos artigos gratuitamente, impressos ou digitalmente, sob a licença Creative Commons.

Marcado em:

COMPARTILHE
ESTE ARTIGO

Mais artigos relacionados