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América Latina: indiferença perigosa diante da crise multilateral

A passividade da América Latina diante do colapso da ordem multilateral ameaça deixar a região indefesa diante das políticas econômicas arbitrárias e dominantes dos Estados Unidos.

O governo de Donald Trump decretou o fim da ordem econômica multilateral. Na prática, o fez mediante a adoção de restrições comerciais arbitrárias e discriminatórias urbi et orbi. Com esse recurso, conseguiu firmar acordos precários com distintos países, enquanto continua divulgando mensagens extorsivas.

Jamieson Greer, que ocupa o cargo de representante comercial dos Estados Unidos, reivindicou, em uma nota publicada pelo New York Times em 7 de agosto, a pretensão de seu governo de se erigir como árbitro supremo das relações econômicas internacionais, empregando expressões como a seguinte: “Em vez do prolongado processo de resolução de disputas que favorece a velha guarda de burocratas comerciais, o novo enfoque estadunidense consiste em supervisionar de perto a implementação dos acordos e, se necessário, reimpor rapidamente uma tarifa mais alta por descumprimento…”.

Sobre a viabilidade de tal postura, convém advertir, em primeiro lugar, que, por uma razão sistêmica, a imposição norte-americana dificilmente poderá prosperar a médio prazo. Em segundo lugar, os países em desenvolvimento deveriam adotar posições alinhadas com seus interesses estruturais, prevendo uma etapa — repleta de dificuldades — durante a qual se tentará reconstituir o sistema econômico internacional sobre novos fundamentos.

Por que o atual multilateralismo econômico está desmoronando?

Desde o pós-guerra, à medida que o sistema capitalista foi adquirindo uma estrutura mais densa e extensa, as disciplinas multilaterais enfraqueceram-se e, nessas instâncias, os países mais desenvolvidos impuseram o peso do seu poder através de medidas unilaterais e acordos discriminatórios e restritivos.

Foram períodos de transição que as sucessivas rodadas de negociações multilaterais do GATT tenderam a superar repetidamente, reajustando as regras para garantir sua viabilidade. É assim que deve ser interpretada a reforma introduzida pela Rodada Uruguai (1986-1993) ao instituir a Organização Mundial do Comércio (OMC). Mas essa diversificação das matérias negociadas no âmbito multilateral, apesar das expectativas iniciais, já é inoperante.

Uma característica definidora da fase de transição em curso é a eclosão de tecnologias da informação e comunicação (TIC), que, ao impulsionar processos inéditos de acumulação, reprodução e concentração de capital, empoderaram corporações transnacionais cuja relação com os Estados nacionais anfitriões se caracteriza tanto por sua interdependência quanto por seu conflito, manifesto ou latente, dependendo das circunstâncias, e com impacto geopolítico decisivo, uma vez que as TIC incluem sistemas e dispositivos de uso duplo (comercial e militar).

No cenário indicado, as regras multilaterais disponíveis não conseguem limitar as estratégias agressivas das empresas transnacionais no setor das TIC. Surgem então as atribuições políticas para estabelecer regulamentações unilaterais em nome de princípios ou valores como a liberdade de expressão, a proteção de dados pessoais, a defesa da concorrência e, em última instância, a segurança nacional.

Por que é necessário recompor a ordem econômica multilateral?

A multiplicação e aceleração dos fluxos econômicos e financeiros mediante ferramentas fornecidas pelas próprias TIC agravaram os desequilíbrios decorrentes da condição assumida pelos Estados Unidos como “locomotiva” do sistema econômico internacional, a começar por seu endividamento considerável. Esse caráter ambivalente resulta de sua condição como fornecedor da moeda de troca e reserva de maior prevalência mundial, ou seja, a senhoriagem.

Um dos mentores da política econômica internacional para o segundo mandato de Trump foi Stephen Miran, que, por meio de um documento divulgado em novembro de 2024 (A Users’s Guide to Restructuring the Global Trading System), recomendou aumentar as tarifas de importação usando a senhoriagem como arma dissuasória. Este influente assessor escreveu: “Quando o país de reserva é grande em comparação com o resto do mundo, não lhe são impostas externalidades significativas devido à sua condição de reserva”. Mais ainda: “… se o ativo de reserva é o elemento vital do comércio mundial e dos sistemas financeiros, isso significa que quem controla o ativo de reserva e a moeda pode exercer certo nível de controle sobre as transações comerciais e financeiras”.

Mas, para conservar a senhoriagem, a manipulação das transações comerciais e financeiras não pode ser infinita. Envolvido na disputa geopolítica com a China pela conquista dos mesmos mercados por meio do comércio e dos investimentos, com contribuições tangíveis e intangíveis das TIC, os Estados Unidos só poderão preservar a senhoriagem se conseguirem se impor sobre o adversário, aceitando determinadas regras.

Assim, tanto as manobras de política econômica de caráter discriminatório e restritivo quanto as práticas corporativas de captação e manipulação de vontades e mercados têm um limite para todos os contendores: se arrasassem com os recursos das populações e territórios conquistados, estariam cavando sua própria cova. Daí a necessidade de recompor uma ordem multilateral e, assim, delimitar os campos de batalha.

Acusações ao Brasil: um tiro por elevação contra o mundo em desenvolvimento

Entre as questões mais sensíveis para países periféricos, como os latino-americanos, e que se agravariam com o prolongamento da orfandade multilateral, merecem destaque as expostas pela “investigação” iniciada em 15 de julho deste ano pelo Escritório do Representante Comercial (USTR) dos Estados Unidos contra o Brasil, sob a severa Seção 301 da Lei de Comércio de 1974. Sob esse regime que viola as regras da OMC — conforme lembrado na pronta resposta do governo brasileiro —, foram formuladas contestações insustentáveis, mas com graves consequências na ausência de um guarda-chuva multilateral adequado. Entre elas, destaca-se o desrespeito aos acordos de integração econômica celebrados por países em desenvolvimento e, adicionalmente, ao tratamento especial e diferenciado.

O desconhecimento de acordos de integração e do tratamento especial e diferenciado pode ter graves consequências

O governo norte-americano afirma que as preferências tarifárias não extensivas trocadas pelo Brasil em acordos com países terceiros — em particular México e Índia — abrangendo bens cuja produção nos países signatários atingiria padrões de competitividade internacional constituem uma demonstração de deslealdade comercial.

Todos os Estados-Membros da OMC estão protegidos multilateralmente para celebrar compromissos de integração econômica. Além disso, os países em desenvolvimento conseguiram obter, ao final da Rodada de Tóquio, um reconhecimento significativo: a “cláusula de habilitação”. Trata-se do direito desses países de acordarem entre si preferências comerciais não extensivas, ou seja, fora do âmbito do princípio da nação mais favorecida. Esse reconhecimento multilateral não admite vetos ou questionamentos de países terceiros. Essas objeções só se justificam no âmbito dos Sistemas Generalizados de Preferências (SGP) que os países desenvolvidos utilizam para suspender preferências unilaterais e discricionárias concedidas a países em desenvolvimento sobre produções inicialmente não competitivas (“cláusula de graduação”).

A pretensão de reinstalar uma espécie de cláusula de graduação viola um direito adquirido pelos países em desenvolvimento e, nesse sentido, ao se erigir como árbitro de desempenhos competitivos circunscritos a determinados setores produtivos, ignora a existência de disparidades e insuficiências básicas.

Assim, o questionamento dos compromissos assumidos por nossos países para fazer valer as poucas exportações tradicionais que contam com vantagens competitivas aposta, mais uma vez, na perpetuação dessas deficiências estruturais.

Essa insensatez só poderá ser superada reafirmando as disciplinas multilaterais que consagram o reconhecimento da integração econômica e do tratamento especial e diferenciado para o mundo em desenvolvimento.

*Tradução automática revisada por Isabel Lima

Autor

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Professor and researcher at the Center for International Studies of the Univ. Institute of Lisbon (CEI/IUL). PhD in Contemporary Political Processes from the Univ. of Salamanca. Specialist in corruption, illegal markets and criminality.

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