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“Até o final”, mas de quê?

María Corina Machado ganhou de forma contundente a eleição primária organizada pelos partidos da Plataforma Unitária na Venezuela. Após o fracasso da estratégia de pressão e colapso promovida pelos partidos da extinta MUD, Acción Democrática, Primero Justicia, Un Nuevo Tiempo e Voluntad Popular buscaram relegitimar a condução da oposição frente à eleição presidencial de 2024, convocando uma eleição primária. No entanto, a Plataforma Unitária já estava ruim. Problemas associados à sua falta de coordenação, manutenção e dissolução do governo interino liderado por Guaidó e a divisão resultante da participação na eleição regional de 2021, entre outros, impediram que esse mecanismo recompusesse o que já estava fraturado. 

Nesse contexto, a eleição primária permitiu que María Corina Machado e Vente Venezuela se esgueirassem nas primárias, com números modestos à princípio, mas que cresceram ao longo do ano que passou entre o anúncio da primária e sua celebração. O paradoxo desse processo é a coexistência de duas ideias contraditórias e que se mantêm em constante tensão. 

Por um lado, a ideia de que não é possível realizar uma transição democrática usando instituições autoritárias, especificamente as eleições. Lembremos que María Corina Machado, e Vente, apoiaram a autojuramentação de Guaidó como presidente do governo interino em janeiro de 2019. No entanto, sempre foi crítica ao interinato por não não ser contundente o suficientemente em suas petições ou ações para buscar uma saída factível do governo, pedindo o aumento das sanções, opondo-se a toda negociação que não envolvesse a saída imediata de Maduro e, inclusive, pedindo uma intervenção militar “humanitária”.

Dessa forma, Machado se posicionou como referência moral frente a um governo interino cada vez mais enredado em casos de corrupção e na incapacidade de cumprir o mantra prometido: “cessação da usurpação, governo de transição e eleições livres”. Assim, o fracasso de Guaidó, do VP e do interinato afetou toda a coalizão de oposição, sobretudo sua base mais militante nas zonas urbanas da classe média em declínio. E Machado conseguiu se mostrar como um outsider, apesar do apoio inicialmente prestado a esta instância. 

Nesse mesmo sentido, Machado também abraçou um discurso moral, marcando a disputa política como “uma luta existencial, do bem contra o mal”, na qual não há meias medidas ou intermediários entre ela e seus seguidores. Dessa forma, seu estilo de liderança lembra o populismo de Nayib Bukele em El Salvador.

Por outro lado, a primária que foi convocada para escolher a candidatura à presidência da República em 2024 é um reconhecimento de que a mudança política é possível mediante o uso de mecanismos institucionalizados para a busca do poder na Venezuela. Mas também é um reconhecimento da Plataforma Unitária como espaço para resolver os problemas de ação coletiva que envolve escolher um candidato à presidência. Machado poderia facilmente optar por apresentar sua candidatura sem passar por esse processo, mas entendeu que, para aspirar a substituir essa instância, teria que usar seus mecanismos e vencê-los em seu próprio terreno.

Nesse sentido, Machado entendeu que deveria competir com as regras de quem tentou monopolizar a representação da oposição na Venezuela e não caiu nos erros de cálculo dos partidos Alianza Democrática, LAPIZ ou Fuerza Vecinal, que buscavam ser a nova referência da oposição porque “pior é nada” ou porque eram os únicos autorizados pelo governo a participar.

Assim, sua primeira missão foi conquistar o espaço de representação da oposição tradicional com suas próprias regras, e foi bem-sucedido. Entretanto, isso não é suficiente para ameaçar o poder do governo autoritário. Diferente do contexto organizacional no seio da oposição, as regras da arena eleitoral nacional são muito mais fluidas, ao qual se soma a vantagem e a repressão por parte do Estado. Para enfrentar esse desafio, Machado precisará ir além do nicho que construiu à direita do G4 e começar a tecer alianças com setores sociais, políticos e econômicos mais amplos, que no passado seus colaboradores próximos e seguidores rotularam de “colaboracionistas”, “traidores” ou “escorpiões”, não só entre os partidos políticos, mas com organizações da sociedade civil e gente que promoveu a participação eleitoral em 2018, 2020 e 2021.

Além disso, Machado também terá que superar as barreiras da ideologia e dos interesses de seu partido. Em um país cujo grau de destruição deixou muitos cidadãos em um estado de desamparo, será necessário o apoio do Estado para que os mais vulneráveis possam sobreviver enquanto o país se recupera. Ignorar essa realidade tornará mais difícil convencer quem hoje não se identifica com o governo nem com a oposição, pois verão em sua ascensão uma ameaça a sua subsistência.

Cabe assinalar que alguns sinais positivos parecem ter se mostrado nas semanas prévias à primária. Por um lado, a aliança com Freddy Superlano, que representava o setor de VP que apoiou a participação na eleição regional de 2021, implicou uma aceitação tácita da importância de ter participado desse evento. No entanto, essa aliança também traz o temor de uma reedição de “La Salida” de 2014. Por outro lado, a assinatura do acordo em Barbados, a moderação frente ao acordo e o reconhecimento de Gerardo Blyde como chefe da delegação também são um sinal positivo nesse sentido. Ainda assim, a recepção dos principais candidatos na noite das primárias foi um sinal de abertura. No entanto, resta saber se esses sinais se conveterão em ações concretas que se traduzirão na construção de uma frente mais ampla, como Andrés Caleca promoveu ao longo de sua campanha, já que sem coordenação não haverá paraíso.

Por fim, a desqualificação de fato de María Corina Machado pelo governo é o desafio mais importante antes da eleição presidencial de 2024. A questão é se seu slogan na primária, “até o fim”, será sobre sua candidatura ou sobre a transição democrática. No primeiro caso, o cenário é um novo mantra inflexível, em que o único fim possível é que ela seja candidata e, se não for, bocoitará a eleição. Se conseguir se registrar, há uma possibilidade real de que ela vença a eleição contra Maduro e inicie um processo de mudança política. Caso contrário, há um risco real de repetição dos cenários de 2013 e 2017, nos quais os protestos de rua derrubarão o trabalho de construção e organização político-eleitoral.

Se, por outro lado, o “até o fim” for sobre transição democrática, o tema não é a candidatura, mas vencer a eleição em um contexto autoritário. O anterior não supõe renunciar de antemão à ser candidata, mas gerar toda a pressão possível para poder concorrer e, se não puder, posicionar-se como a grande eleitora do substituto, por meio da construção de um mecanismo consensual para a substituição de sua candidatura. Ou seja, se o objetivo final for derrotar o governo na arena eleitoral como parte de uma estratégia mais ampla para impulsionar uma possível transição, então o “até o fim” não tem nome, mesmo que ela o lidere. 

Sendo assim, a vitória de María Corina Machado gerou esperança em alguns setores da oposição que estavam descontentes com os partidos da MUD. Entretanto, embora seja um bom começo, não é suficiente. É preciso maior abertura, inclusão e coordenação não só de sua parte, mas de sua comitiva e de seus seguidores; caso contrário, o risco de fragmentação ou desinteresse dificultará ainda mais a construção da aliança democratizante necessária para realizar a transição democrática do país. Dito isso, o resultado também supõe que, por outro lado, tanto os partidos e candidatos que participaram na primária quanto os que se mantiveram à margem reconheçam o novo papel de María Corina Machado na oposição; ela não pode ser ignorada no futuro processo de tomada de decisões. Enquanto isso, o governo, apesar de ter assinado os acordos de Barbados, continuará suas práticas autoritárias, como visto após as primárias de 22 de outubro.

Autor

Doctor en Procesos Políticos Contemporaneos por la Univ. de Salamanca. Fue coordinador de investigaciones en el Centro de Estudios Políticos de la Univ. Católica Andrés Bello. Coautor del libro "Crisis y Democracia en Venezuela" (UCAB Ed., 2017).

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