Logo nos primeiros dias de 2022, o mundo registrou recordes consecutivos de infecções por Covid-19, causados principalmente pela variante Ômicron. Ao mesmo tempo, o Brasil completava um mês sem informar seus números de casos da doença. Em meio ao pior apagão de dados da pandemia, cientistas como Natalia Pasternak, Miguel Nicolelis e Átila Iamarino pareciam gritar sozinhos que o país estava cego de sua pandemia, enquanto na imprensa o problema já não parecia incomodar tanto.
Este não foi o primeiro apagão de dados da pandemia no Brasil. Em 2020, quando o Governo Federal decidiu pela primeira vez adotar uma política baseada no apagão, diversos setores da sociedade, como órgãos de mídia, políticos, especialistas e influenciadores digitais, reagiram com força em nome da defesa da vida e da transparência. De lá para cá, outros apagões ocorreram, mas por que agora, em 2022, parece que o brasileiro se importa menos? O que aconteceu com o jornalismo e seu papel de “cão de guarda” logo agora que a pandemia voltou a crescer em meio a uma variante ainda mais contagiosa?
Uma possível resposta pode estar na comparação entre o contexto de 2020 e o de 2022.
Acabou matéria no Jornal Nacional
Analisando cerca de 3 milhões de tweets entre os dias 3 e 10 de junho de 2020, foi observado que houve um crescente uso do enquadramento discursivo da culpabilidade em relação ao Governo Federal na má gestão da pandemia, alcançando o seu maior pico no dia 8 de junho.
O motivo: no dia 3 de junho o Ministério da Saúde atrasou pela primeira vez a divulgação dos dados oficiais sobre o número de mortos e infectados para as 22h. Assim, ele impediria que os horríveis números da pandemia fossem divulgados às 20h no jornal mais tradicional do país veiculado pela Rede Globo, no seu horário de maior audiência.
Dois dias depois, no dia 5, Bolsonaro ameaçou deixar a Organização Mundial da Saúde (OMS), alegando que a instituição teria uma atuação “partidária”. No dia 6, foi definido de forma oficial o horário das 22 horas para a divulgação dos dados sobre mortos e infectados. “Acabou matéria no Jornal Nacional”, comemorou Bolsonaro em uma entrevista à CNN Brasil.
A atitude do governo teve uma resposta rápida da imprensa naquele ano. A partir daquele dia, os maiores veículos se uniram para formar um consórcio com objetivo de reunir e divulgar os dados da pandemia. A coleta dos números passou a ser feita diretamente com os estados, não mais dependendo da divulgação pelo Governo Federal.
A decisão de mudar o horário de divulgação foi vista por vários setores da sociedade como uma tentativa de esconder os dados, definindo-a como o primeiro “apagão”. A medida teve um claro caráter de embate com a mídia nacional, o que pode ter contribuído para que a mesma reagisse de forma mais contundente que em 2022.
Neste primeiro mês de 2022, apesar da grande aceleração dos contágios e mortes, o avanço da vacinação, o ambiente pré-eleitoral e a narrativa de que a variante Ômicron é mais contagiosa, porém menos mortífera, unido ao desejo de superação da pandemia, parece estar impedindo que o tema do apagão se torne tão importante como foi em 2020 e choque jornalistas e a opinião pública.
Em 2020, uma série de condições acumuladas gerou a explosão de atribuições de culpa ao Governo Federal e tornou o tópico do apagão central. Entre elas, a piora sistemática da pandemia, os embates entre Bolsonaro e boa parte da grande mídia, a esperança de diversos setores de potenciar o desgaste de Bolsonaro perante a opinião pública e a crise econômica associada à Covid-19.
Em 2022, essa tendência a acreditar, ou a querer acreditar, que a crise está prestes a acabar embora esteja piorando do ponto de vista objetivo, parece ter a mesma raiz das condições que levaram a muitos brasileiros a evitar a vacinação e ao apego a soluções fáceis como a cloroquina e outros fármacos “milagrosos”. Se trata de percepções ditadas mais pelos desejos do que pela constatação da realidade. Por outro lado, o cansaço causado pelas medidas de distanciamento social pode estar afetando inclusive o jornalismo no Brasil a não falar mais no apagão dos dados como um dos principais problemas hoje.
Por que este é o apagão mais grave
O Brasil foi um dos países mais atingidos pela pandemia no mundo. Embora corresponda a só 2% da população mundial, o país concentra 6% das infecções por Covid-19. Antes deste último apagão de dados, que começou em dezembro de 2021, o país acumulava 8% dos casos do mundo, com seus mais de 20 milhões de infectados. Em mortes, o Brasil perde apenas para os Estados Unidos.
Em 13 de dezembro, o Ministério da Saúde informou ter sofrido um ataque hacker em todos os seus sistemas. A ação derrubou o acesso aos comprovantes de vacinação e, mais grave, impossibilitou que hospitais, laboratórios e municípios informassem os números de novas infecções e mortes. O problema levou um mês para ser resolvido e, ainda hoje, estados relatam instabilidades.
Este último apagão, no entanto, atingiu os dados em sua origem. Com todos os bancos de dados fora do ar, nem mesmo os estados conseguiam visualizar os números de casos e mortes. Durante um mês, o Brasil registrou números baixíssimos de infecções e óbitos, passando a sensação de que a pandemia caminhava para o fim.
Enquanto praias e setores turísticos seguem lotados, colocando à prova a proteção das vacinas desenvolvidas, a coleta dos dados continua acontecendo, assim como a sua divulgação na mídia, ainda que os números não correspondam mais à realidade. A falsa sensação de que “a pandemia está acabando” foi reforçada por uma divulgação acrítica de números.
Agora, após o problema ser parcialmente resolvido, os recordes de casos diariamente parecem assustar. As principais vítimas desta nova onda parecem ser as crianças, ainda não vacinadas. A falta de transparência durante a pandemia é uma política de governo no Brasil, mas essa informação não parece chegar ao público. Uma falha grave dos comunicadores durante uma pandemia que já matou mais de 600 mil pessoas no país.
Autor
Pesquisador em opinião pública, enquadramento discursivo nas mídias e ciências sociais computacionais. Membro do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Internet e Política da PUC-Rio.