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Brasil contra as mulheres

Os retrocessos sobre direitos reprodutivos das mulheres se conectam à presença e à linguagem violenta de líderes políticos extremistas, e processos de desinformação.

Recentemente assistimos a uma verdadeira comoção nacional no Brasil: milhares de mulheres foram às ruas pelas suas vidas, de suas amigas, vizinhas, pelas vidas de suas filhas, sobrinhas e netas. Pelo direito de não serem punidas porque foram estupradas, de que uma criança não seja forçada a levar a termo uma gestação que põe em risco a sua existência e o seu futuro. O motivo logo se espalhou pelas salas, ruas, bares, pelas redes – “um projeto de lei que defende estupradores” – comentavam perplexos.

Mas como chegamos até aqui? Muito mais do que uma questão apenas brasileira, podemos conectar movimentos em escala mundial e intensos na última década. Eles andam lado a lado ao crescimento e tentativa de ampliação de domínios de forças antidemocráticas e grupos internacionais influentes que desprezam os valores democráticos.

Agendas como #MeToo #Niunamenos #EleNão agora testemunham uma nova edição: #Criançanãoémãe. É interessante perceber como a agenda sobre o aborto está intimamente ligada ao pouco crédito que muitas sociedades conferem ao crime que por vezes lhe origina: o estupro, seja de pessoa incapaz ou da mulher adulta.

É crucial perceber como os retrocessos sobre direitos reprodutivos das mulheres se conectam à presença e à linguagem violenta de líderes políticos extremistas, e processos de desinformação. São esses os modos e a linguagem violenta e extremista de Donald Trump, condenado por estupro, e o concomitante retrocesso da decisão da Suprema Corte sobre o entendimento de Roe contra Wade nos EUA.

Ou do discurso do extremista Javier Milei na Argentina, que equipara o direito ao aborto a um “homicídio qualificado”. E cria um sentimento generalizado de pânico e desinformação sobre um assunto de saúde pública fundamental para a vida da metade da população do seu país.

Eleger extremistas como estes, uma rede internacional que apoia figuras como Jair Bolsonaro, também incita a violência de modos nunca vistos. Não foram apenas os ataques às instituições, e o 8 de janeiro de 2023. Após quatro anos de desastrosos atos e incitações violentas de golpes e machismos de toda sorte pelo então presidente da República, em 2022, o Brasil registrou o maior número de estupros da sua história.

Sim, faz diferença atuar contra o atendimento apropriado para quem sofre um estupro, ainda mais quando o mesmo algoz das mulheres se torna presidente. Se em 2021 foram 68.885 ocorrências, em 2022 foram registradas 74.930, um incremento de 8,2%. Das vítimas, 61,4% que tiveram ocorrência registrada em 2022 tinham no máximo 13 anos.

O racismo também é um fator relevante para a análise do problema. Pessoas negras seguem sendo as principais vítimas da violência sexual: Em 2021, 52,2% das vítimas eram pretas ou pardas, em 2022, a porcentagem de vítimas pretas ou pardas aumentou para 56,8%. Ao traçar o perfil do agressor, foi identificado que, em 64,4% dos casos em que a vítima possui até 13 anos, o abusador é um familiar. Quando a vítima tem mais de 14 anos, em 37,9% dos casos também é um familiar.

Os algozes das mulheres partilham esse valor principal em comum: não consideram estupro um crime grave. Por vezes apoiam familiares que estupram, jogadores de futebol estupradores, ou mesmo apelam para que conhecidos estupradores sejam perdoados, ou nem mesmo levados aos tribunais.

Os apoiadores de estupradores, sempre dispostos a retroceder quando o assunto são os direitos das mulheres têm nomes, que precisam ser repetidos. Os de hoje são Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e Arthur Lira (PP-AL). Para além do retrocesso em relação aos direitos já conquistados pelas mulheres, o que mais tais figuras possuem em comum? PL e PP são dois partidos que fazem parte do chamado Centrão, ele mesmo.

Centrão de Eduardo Cunha, que também votou e apoiou o processo de impeachment de Dilma Rousseff (única mulher presidente eleita na história do país, afastada sem provas factuais em 2016). O mesmo algoz dos direitos das mulheres que em 2015 provocou manifestações nacionais contra o projeto de Lei 5069, de autoria do próprio, então presidente da Câmara dos Deputados, que dificultava o aborto legal em casos de estupro. Em comum, votar no Centrão traz esse legado contra as mulheres no Brasil: presidentes da câmara que votam e promovem o machismo mais torpe e a violência sexual.

Mas de onde então podemos trazer a história destes senhores que se acham os protetores da “moral e dos bons costumes”, e apoiam que uma criança seja punida com vinte anos de prisão por sofrer um aborto, mas que para os parentes, os amigos e até na sua igreja fazem vista grossa aos casos de estupro?

Origens históricas da violência contra as mulheres

Tão antiga quanto a colonização portuguesa, a prática escravocrata e a exploração sexual das mulheres são marcos fundadores do processo de extermínio nacional. Desde a chegada dos colonizadores ao país, a vida das mulheres no Brasil dependia dos laços que conseguissem estabelecer com os homens.

Órfãs eram enviadas de Portugal para popular a colônia, e mesmo as mulheres brancas ricas tinham como única opção de sustento casamentos arranjados.  A outra alternativa possível era se recolher a um convento. A política régia, entretanto, proibiu, desde cedo, a criação de conventos femininos na colônia, para aumentar o número de portugueses e seus descendentes nas possessões ultramarinas da monarquia lusitana. Em 1677 foi fundado o primeiro convento feminino do Brasil: o Convento das Clarissas do Desterro, na Bahia. A iniciativa manteve-se, no entanto, como uma ação isolada.

A maioria das mulheres – indígenas, africanas ou brancas – viviam em condições de união consensual ou concubinato. No Brasil urbano e rural, mulheres e homens frequentavam cultos católicos romanos e se juntavam a confrarias ou constituíam suas próprias práticas religiosas informais e domésticas em casa ou em festas comemorativas pela Virgem Maria e demais santos. Como atestam estudos históricos sobre o assunto, realizados pela professora da Illinois Wesleyan University, Carole A. Myscofski, as mulheres eram simultaneamente marginalizadas, deturpadas, idealizadas e demonizadas quando tentavam lutar pela sua liberdade.

Apesar de por muito tempo restritas à esfera privada, ao longo do tempo, as mulheres se articularam a partir do que lhes foi reservado, por vezes o mundo doméstico, a filantropia e até mesmo as próprias Igrejas. Esses espaços definidos de socialização, quando tensionados podem constituir conquistas futuras. É assim que assistimos hoje também em igual intensidade à organização de frentes como a Frente Evangélica pela Legalização do Aborto, atuando conjuntamente com outras vertentes diversas como as  Católicas pelo Direito de Decidir e o Instituto Polis, que se unem contra a criminalização de meninas negras e periféricas.

Sendo assim, é interessante perceber como o atual PL do aborto (ou seria o PL do estuprador?) marca mais um momento de séculos de história, de uma parte do Brasil que ainda teima em ir contra a vida e o bem-estar das mulheres, desde a mais tenra infância. Mas, ainda bem, marca também a esperança e resistência das mulheres, que juntas, andam a se organizar e marchar por aí.

Autor

Profª. de Ciência Política da PUC-Rio e do Programa de Pós-Graduação em C. Sociais da UFRRJ. Doutora em C. Sociais (PUC-Rio). Membro da Rede de Politólogas #NoSinMujeres.

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