O recente plebiscito constitucional realizado no Chile evidenciou três marcos. Primeiro, a opção a favor da mudança constitucional foi amplamente apoiada pelos cidadãos. Segundo, os resultados obtidos pela opção da Convenção Constituinte confirmam o distanciamento entre os cidadãos e as instituições políticas. Terceiro, esta eleição, apesar da pandemia, apresentou os maiores níveis de participação desde a introdução do voto voluntário (2012).
A participação não foi homogênea no Chile”
Entretanto, a participação não foi homogênea no Chile. Este é um precedente a ser considerado a fim de assegurar que a discussão constitucional realmente envolva uma grande parte dos cidadãos. Ao considerar as regiões do sul do Chile, a participação não excedeu 50%. Estes dados contrastam com os resultados obtidos nas regiões do norte e na Região Metropolitana, que aumentaram seus níveis de participação em relação às últimas eleições, e alguns atingiram níveis acima de 50%.
O que explicaria a menor participação nessas regiões do sul? Esta é uma pergunta relevante para o processo que se aproxima. Nesta coluna, atrevo-me a apresentar algumas hipóteses, analisando o que aconteceu especificamente na região da Araucanía.
Esta é uma das regiões mais pobres e desiguais do país, apresentando um prolongado conflito chileno-mapuche como um elemento identitário que tem gerado uma série de consequências simbólicas e materiais para seu desenvolvimento. A presença do Estado é baixa e tem uma grande população rural. Na última eleição, a participação alcançou 40,15%, um percentual menor do que na última eleição presidencial. Somente Temuco, a capital regional, obteve uma porcentagem de participação semelhante a essa eleição.
Três elementos estruturais explicariam esta baixa participação. Em primeiro lugar, as redes e instituições informais atuam como o equivalente funcional do Estado. Portanto, predominam mecanismos informais de participação que promovem uma lógica personalista e tradicional. Entre estas instituições se destacam o clientelismo, o nepotismo e o patronato. Não é coincidência que as eleições municipais registrem uma maior participação eleitoral na região.
Como não havia candidatos neste plebiscito, as possibilidades de realizar o clientelismo eram nulas”
De fato, o município é visto por parte da população como um local de trabalho estável e protegido, ao contrário das características precárias do mercado laboral da Araucanía. Portanto, a eleição da autoridade local não é importante apenas devido aos aspectos políticos ideológicos envolvidos, mas também por causa das oportunidades econômicas e de emprego. Como não havia candidatos neste plebiscito, as possibilidades de realizar o clientelismo eram nulas.
Em segundo lugar, desenvolveu-se na região uma cultura cívica conservadora e passiva. O Barômetro Regional da Araucanía recentemente aplicado na região apoia esta ideia, uma vez que apenas 54% dos entrevistados na região declaram que a Democracia é preferível a qualquer outra forma de governo. 13% declaram ter participado nos últimos 5 anos de manifestações passivas, apesar do contexto de desigualdade e pobreza vivido na região. E com respeito ao interesse na política regional e nacional, isto não excede 4 pontos em uma escala ascendente de 1 a 10. Em termos de resultados eleitorais, a direita geralmente tem um desempenho melhor do que a esquerda.
Em terceiro lugar, juntamente com outros pesquisadores, propomos que existe uma multiplicidade de conflitos na região que são latentes. O conflito chileno-mapuche é o mais visível, mas não é o único. Além disso, as soluções que têm sido propostas recentemente promovem medidas policiais e de controle. Os conflitos trabalhistas, legais, socioeconômicos e ambientais também são importantes. Concentrar-se apenas em situações manifestas de conflito tornam invisíveis as soluções políticas estruturais que possam ser desenvolvidas, inibindo assim a participação nas tomadas de decisão e deliberação política.
Por estas razões, é necessário gerar ações contextualizadas para fomentar a participação no processo constituinte chileno. Este é um processo de longo prazo no qual devemos definir nossa institucionalidade política e as normas essenciais que nos regerão pelos próximos anos.
A Constituição resguarda uma certa visão da sociedade e é legítima quando reflete os valores, princípios e crenças aceitos pela sociedade como um todo. Ela também reflete as relações de poder, já que distribui através de diferentes órgãos as decisões que afetarão todo o país. Portanto, estamos diante de uma tarefa que exige que todos e todas sejam participantes ativos neste importante processo e que se resguardem altos padrões de transparência.
A transparência é essencial para reverter a desconfiança que os cidadãos têm em relação aos atores políticos e às instituições”
A transparência é essencial para reverter a desconfiança que os cidadãos têm em relação aos atores políticos e às instituições. O direito de acesso à informação pública já está consagrado na lei, mas este ainda não é um direito consagrado na Constituição. Além disso, de acordo com dados do Conselho para a Transparência, seu uso tem sido restrito a grupos minoritários da população com níveis mais altos de educação. Este processo abre uma janela de oportunidade para que os cidadãos se apropriem de fato deste direito e o exerçam sem restrições.
Ter acesso em linguagem clara e cívica às declarações de patrimônio e interesse dos constituintes convencionais, saber quem financiou suas campanhas, ter acesso às discussões sobre o conteúdo da constituição, saber o objetivo das reuniões realizadas com os grupos de interesse, são práticas que devem ser promovidas para evitar que este processo perca legitimidade ou seja capturado por uma minoria. Além disso, a transparência deve ser um princípio fundador de todas as instituições projetadas ou transformadas neste processo.
Não basta que a informação esteja disponível para resguardar a credibilidade da discussão constitucional; o papel que os cidadãos podem desempenhar no monitoramento e acompanhamento é crucial. Neste contexto, a participação não deve ser restringida a votar ou ratificar determinadas decisões; é fundamental assumir e colocar em prática um conceito complexo de participação que inclua diferentes graus de envolvimento dos cidadãos, assim como contribuir com ideias para a discussão constitucional.
É vital que os cidadãos do Chile adotem uma atitude ativa sobre o que está sendo discutido e para onde a constituição é dirigida, já que o texto final terá consequências relevantes para nossa vida cotidiana.
O papel que instituições como o Conselho para a Transparência, organizações pró-transparência, universidades regionais e estações de rádio locais podem desempenhar torna-se relevante, pois além de promover os princípios de transparência e o direito de acesso à informação, elas podem desenvolver instâncias de capacitação para que os cidadãos possam ter um papel ativo no debate que se abre no Chile.
*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima
Foto de pslachevsky en Foter.com / CC BY-NC-SA
Autor
Professor do Dep. de Sociologia, C. Política e Adm. Pública da Univ. Católica de Temuco (Chile). Pesquisador no Centro de Políticas Públicas dessa universidade. Doutor em Estudos Latino-Americanos pela Univ. do Chile. Especializado em corrupção e clientelismo político.