A morte cruzada empregada pelo presidente Lasso perturbou o cenário político no Equador. Um sistema presidencialista não convive bem com expedientes de cunho parlamentarista, como o da morte cruzada. Nesse desenho constitucional equatoriano, sua adoção foi concebida como um instrumento dissuasivo, pensado para negociar saídas consensuais entre atores conflitantes, intimidados pela ameaça de sua possível extinção.
A dissolução da Assembleia pelo presidente deveria funcionar como ameaça que permite evitar a escalada do conflito. Nesse caso, entretanto, os atores concorrentes não viram o risco disso se materializar. Atores pouco dispostos ao diálogo, acostumados ao canibalismo político, a uma dinâmica de devastação das forças opositoras, puxaram as cordas até que se rompessem.
O presidente ativou o dispositivo afetado pela conjuntura, a ponto de sofrer sua possível destituição em juízo político que, mais do que argumentos, visava a limpar o terreno dos juízos penais que mantêm o ex-presidente Rafael Correa no exílio e, assim, criar as condições que permitiriam seu retorno à disputa política.
A aplicação da morte cruzada desativou essa estratégia e gerou, ao menos por enquanto, um novo espaço para a rearticulação das forças políticas. Seus efeitos na conjuntura imediata foram evidentes: ela conseguiu desbloquear o conflito e obrigou os atores a abandonarem o confronto para se ocuparem de fixar suas bases internas e se colocarem na linha de partida do próximo evento eleitoral. Um tour de force que colocou em jogo as capacidades de cálculo político e obrigou os atores políticos a preencherem listas e acelerar acordos internos.
Os efeitos post mortem começaram a ser evidentes, mas ficaram mais claros e evidentes com os resultados da disputa eleitoral. O curto prazo para a mudança levou o sistema a repetir suas lógicas, o imediatismo e o personalismo estão na ordem do dia, demonstrando que é um fenômeno claramente derivado do que a Constituição de Montecristi reserva para o sistema de representação. Um híbrido que permite a coexistência de partidos políticos de representação nacional e movimentos políticos de representação local. Um desenho institucional que favorece, paradoxalmente, a construção de lideranças personalistas e a concentração de poder, uma clara base de apoio ao caudilhismo e ao hiperpresidencialismo.
Há outro elemento de natureza diferente, mas que entra em jogo e que certamente mudará as prioridades dos eleitores ao irem às urnas, que é a convocação, no mesmo ato eleitoral, de uma consulta popular sobre a eventual suspensão de atividades petrolíferas no bloco 43 do nordeste amazônico. O Tribunal Constitucional aprovou a consulta após 10 anos de proposta. Se até então se tratava de impedir sua exploração, agora o que se aponta é detê-la, depois de casos de desastres ambientais que contaminaram o parque natural Yasuní, uma das zonas de maior biodiversidade do planeta. Esta confluência da consulta no mesmo ato eleitoral pode incidir seriamente nas motivações do voto, especialmente no setor jovem, que têm entre 16 e 35 anos e representam 30% do eleitorado.
Sendo esse o contexto, a cartada eleitoral e os alinhamentos parecem já estar definidos; segundo as principais pesquisas de opinião, o cenário tende à polarização do voto entre Luisa González, fiel seguidora de Rafael Correa e da ala neoconservadora do correísmo, e Yaku Pérez, que aglutina setores do ambientalismo e da esquerda tradicional, enquanto a centro-direita, dividida entre Jean Topic, Otto Sonenzholzner e Fernando Villavicencio, parece se reduzir a disputar a liderança da tendência e colocar suas candidaturas no radar dos eleitores para as eleições de 2025.
Tudo parece indicar que os grandes desafios do país não se resolverão de forma alguma com a mudança política induzida pela morte cruzada. Ficam os problemas estruturais da política e da economia aos quais os candidatos não parecem dar atenção especial. Entre eles, a necessidade de convocar uma reforma radical do sistema político que, entre outros temas, vise reduzir a dicotomia entre partidos e movimentos políticos, responsável pela atual fragmentação política, onde existem 287 organizações políticas. Uma fragmentação que explica a carência de propostas programáticas dos candidatos e seu desfile pelo tapete vermelho, no qual tudo se reduz à apresentação de seus talentos pessoais.
Mas toda eleição envolve uma renovação de expectativas. A comoção gerada pela morte cruzada pode abrir a porta para mudanças substanciais, tanto na concepção de desenvolvimento econômico ao promover um impulso importante à saída do extrativismo, quanto para uma reforma institucional que acabe com o hiperpresidencialismo, mas também pode ser a porta para o retorno de Rafael Correa e do neopopulismo e seu assédio sistemático às instituições democráticas. Algo que mais da metade do eleitorado gostaria de evitar, mas que a própria fragmentação do sistema poderia tornar possível.
Autor
Sociólogo. Lecionou em diferentes universidades do Equador e é autor de vários livros. Doutor em Sociologia pela Università degli Studi di Trento (Itália). Especializado em análise política e institucional, sociologia da cultura e urbanismo.