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Francisco, o profeta com uma escova de dentes

A leveza de um líder da Igreja que abandonou, por um breve intervalo, sua imperturbável cumplicidade com a ordem estabelecida podia nos encher de um otimismo saudável e moderado.

“É muito cedo para opinar”, dizem que respondeu el primeiro-ministro chinês Zhou Enlai quando lhe perguntaram sobre o impacto histórico da Revolução Francesa. O antecedente histórico imediato do pontificado de Francisco foi o longo inverno eclesial inaugurado por João Paulo II e continuado de forma bem menos carismática e mais doutrinária por Bento XVI. Contra essa longa e pesada herança, Francisco se lançou armado de sua escova de dentes: “fazer reformas em Roma é como limpar a Esfinge do Egito com uma escova de dentes”, brincou em 2017.

A metáfora é apropriada. João XXIII empreendeu uma reforma mais profunda contra uma herança de vários milênios armado com o Concílio Vaticano II. E por trás do Concílio agitava-se uma rede de padres, freiras, bispos, teólogos e agentes de pastoral que desenvolveram seus ensinamentos e até radicalizaram suas implicações. Os ventos da época invadiram as janelas carcomidas da instituição mais venerável do Ocidente. Quando Jorge Bergoglio, primeiro papa latino-americano, calçou o anel do pescador, trazia consigo uma trajetória moderada e até conservadora, quase tão inofensiva quanto a de João XXIII. Mas o mais importante é que as tempestades do mundo sopravam noutra direção, com um exército de agentes de pastoral que não apenas reagiam à onda conservadora da instituição, mas também a uma onda expansiva conservadora impulsionada pelo medo, pela incerteza e pela gélida convicção de que o futuro será pior do que foi o passado.

Nesse cenário improvável, Francisco inaugurou uma primavera tímida e impensável. Seu legado mais poderoso talvez seja o compromisso com a defesa da face da Terra, expresso na memorável Encíclica Laudato Si’. Com ela, acompanhava um movimento social real e reforçava uma tendência vigorosa entre os mais jovens. Mas também fez outros gestos. Desde o nome escolhido (Francisco) — com o qual nos surpreendemos ao perceber que nenhum pontífice jamais havia se identificado com o apóstolo dos pobres e irmão dos animais. Acabou acolhendo, quase em descompasso com o tempo, casais homossexuais, seus filhos e pessoas com identidades sexuais não binárias. “O diabo entra pelo bolso”, disse certa vez, ao reivindicar uma Igreja fiel às suas origens escravas. Assumiu como própria a luta de migrantes ilegalizados e refugiados, trabalhadores marginalizados e povos originários despojados. Dizem que também protagonizou uma mudança na escolha de cardeais para contribuir com uma futura consolidação da orientação que tentou inaugurar. Isso é mais difícil de garantir. Afinal, ninguém jamais escreveu o próprio epitáfio. Foram os cardeais escolhidos por João Paulo II e Bento XVI que elegeram Francisco.Estivemos bastante longe das melhores fantasias revolucionárias da Teologia da Libertação. Mas a leveza de um líder da Igreja que abandonou, por um breve intervalo, sua imperturbável cumplicidade com a ordem estabelecida podia nos encher de um otimismo saudável e moderado. Seus limites são os do nosso tempo. Talvez não seja assim, mas a imagem predominante é a de um profeta solitário pregando mais perto do deserto do que de multidões atentas. Falta um movimento por trás da voz. Aqui e ali, segue-se articulando a vontade de caminhar. Mas a marcha é demasiado lenta e ainda reativa. Uma voz lá no alto, no Vaticano, ajuda, mas não substitui os processos coletivos que articulam ativistas, agentes de pastoral e multidões em busca de alternativas. Perdemos uma voz. Um homem bom. Oxalá seja só por um tempo.

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Historiador. Doutor (PhD) em Humanidades pelo Centre for Latin American Research and Documentation (CEDLA), Amsterdã. Professor da Universidade Andina Simón Bolívar e militante da Comissão de Vivência, Fé e Política.

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