Desde a posse de Javier Milei, em 10 de dezembro, começou a tramitar na Argentina a experiência inédita de um governo com estilo e conteúdo hiperpresidencialista, que se propõe a tomar medidas drásticas e fazer mudanças legislativas importantes com uma agenda máxima sem uma maioria parlamentar. Milei se tornou o candidato presidencial mais votado da história argentina e, ao mesmo tempo, o presidente com menos apoio parlamentar e o único cuja força política não ganhou nenhum dos governos provinciais. Seu partido, La Libertad Avanza, tem só 38 deputados próprios de um total de 257, e 7 senadores de 72. Isso porque Milei chegou à presidência no segundo turno com 56% dos votos, após obter 30% no primeiro, o que resultou na atual composição do Congresso.
Ainda assim, se propõe a refundar o país, mudando completamente sua estrutura econômica e social em meio a um contexto hiperinflacionário, ao mesmo tempo, de recessão.
Nessa dinâmica, afloram as tensões, ajustes e desajustes entre a representação democrática e o funcionamento do sistema republicano. Ou, em outras palavras, entre os jogadores e as equipes, desempenhando seus papéis e implantando suas estratégias de jogo, e o próprio jogo que se joga. Governo e oposição, e quem ocupa o Executivo e o Legislativo, em tensão e competição, mas com o imperativo comum e urgente da governabilidade, entrando em território desconhecido e sob as necessidades e urgências que crise econômica impõe e a expectativa de uma sociedade exausta. Uma queda de braço da qual, além de ganhadores e perdedores, em um futuro imediato, deve resultar em algum tipo de acordo que dê condições para uma gestão de governo recém começada e que, após um mês e meio do início, já teve de enfrentar a primeira greve geral convocada pela CGT.
Assim, além das retóricas inflamadas e frases agressivas, algo que o presidente argentino cultua diariamente no Twitter (X), a sístole e a diástole do coração político oscilam entre o realismo e o voluntarismo, a negociação e o decisionismo, jogando no fio da navalha, tensionando o tecido, mas sem rasgá-lo, sabendo que, caso contrário, todos perdem.
A isso deve ser somado o humor social como um fator incidental para não perder de vista. A Pesquisa de Satisfação Política e Opinião Pública da Universidade de San Andrés (UdeSA), realizada entre 9 e 14 de janeiro, mostra um país dividido na metade: um mês após a posse, 48% aprovam o governo de Milei, enquanto 48% o desaprovam. Segundo os dados dessa pesquisa, em dezembro Milei tinha 54% de aprovação, conservando assim o voto obtido no segundo turno. Um mês depois, a imagem presidencial caiu 6 pontos, apesar de Milei continuar na liderança de imagem positiva. O resto da liderança, sobretudo a identificada com os longos anos de governos kirchneristas, têm uma estima pública baixíssima, o que também arrastou os líderes da oposição, o que explica a ascensão à presidência desse personagem excêntrico sem experiência de gestão.
Por outro lado, à pergunta “Qual é o seu nível de satisfação com o andamento das coisas no país?”, uma maioria esmagadora se diz totalmente insatisfeita: 50% não estão nada satisfeitos, 21% estão pouco satisfeitos, 21% estão um pouco satisfeitos e só 5% se dizem “muito satisfeitos”. Os três poderes do governo na Argentina também têm baixa pontuação em termos de desempenho: 31% para o Executivo, 23% para o Judiciário e 20% para o Senado e Deputados. Com relação aos principais problemas que as pessoas identificam, a inflação (57%), os baixos salários (33%), a insegurança (32%), a corrupção (29%), a pobreza (28%) e os “políticos” (25%) encabeçam a lista.
Quanto à relação entre o partido governista e a oposição, 60% dos entrevistados acreditam que o presidente deve negociar sua agenda com o Congresso, frente a 17% que dizem que ele deve impô-la. Ao mesmo tempo, 47% dos entrevistados pensam que o Congresso deve cooperar com o presidente e negociar algumas reformas, 27% acreditam que não deve cooperar e só 14% acreditam que deve aprovar a delegação de poderes.
Como aponta Daniel Zovatto, que vem acompanhando esses indicadores em toda a América Latina, “os cidadãos exigem resultados concretos da democracia e de suas instituições, soluções democráticas eficazes e oportunas para seus problemas, e não só procedimentos para eleger e substituir seus governantes”.
O risco existe: segundo o Latinobarómetro2023, 54% dos entrevistados em nossa região dizem que não se importariam de viver sob um regime não democrático se isso resolvesse seus problemas.
Embora essa distopia – um regime não democrático que resolva os problemas – não exista na realidade, nossas democracias estão incubando nessa insatisfação um monte de Bukeles dispostos a matar políticos e instituições para tomar o Palácio com o respaldo do voto popular. Algo que, desde os antigos gregos e romanos, tem um nome: chama-se autocracia, ditadura ou tirania. E na América Latina, sem ir tão longe, assume a forma de “democracias delegativas”.
As democracias delegativas baseiam-se na premissa de que quem quer que ganhe uma eleição presidencial terá o direito de governar como considera apropriado, restringido só pela dura realidade das relações de poder existentes e por um período constitucionalmente limitado, como definido por Guillermo O’Donnell há trinta anos.
*Texto originalmente publicado no Clarín
Autor
Cientista político e jornalista. Editor-chefe da seção Opinião do jornal Clarín. Prof. da Univ. Nacional de Tres de Febrero, da Univ. Argentina da Empresa (UADE) e de FLACSO-Argentina. Autor de "Detrás de Perón"(2013) e "Braden o Perón. La historia oculta"(2011).