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Narrativa populista, polarização e fadiga da democracia

O populismo tem sido definido como um discurso que concebe a política como uma luta maniqueísta entre a vontade de um “povo” homogeneamente bom e os interesses de uma “elite” homogeneamente corrupta. O populismo é, sob a perspectiva ideacional da ciência política, um conjunto de ideias que pensa a política não como o desafio de representar e processar diferentes interesses, identidades e preferências em escolhas coletivas vinculantes – como postula a tradição liberal – mas como uma oposição moral irredutível entre duas entidades – o povo e a elite – à qual reduzem sua cosmogonia social.

É revelador analisar a narrativa ou o chamado “relato” que os líderes populistas usam para se dirigir ao seu eleitorado. De modo geral, a narrativa populista é composta de histórias que simplificam a complexidade inerente da política por meio da apropriação seletiva de personagens e eventos, que são apresentados como causal e temporalmente relacionados uns aos outros de uma maneira específica. A narrativa populista é altamente eficaz para dar sentido a eventos e fatos complexos, proporcionando certeza aos cidadãos que enfrentam a realidade inerentemente ambígua e difusa da política. A narrativa populista oferece um atalho cognitivo que dá um significado simples à complexidade da política.

O apelo a uma narrativa certamente não é exclusivo do populismo. Todos os líderes políticos recorrem a histórias que oferecem uma visão seletiva da realidade política. Esse é um atributo inerente a todo discurso político. Nesse sentido, o que distingue a narrativa populista é que, na simplificação da realidade que propõe, constrói uma ordem que orienta o público a entender a política não em termos de fatos, mas em termos morais. A narrativa populista não é primordialmente sobre eventos, mas sobre o estabelecimento de distinções morais. O relato populista, como um tipo de narrativa, é, em grande parte, independente dos acontecimentos. Embora a narrativa populista se baseie em alguns eventos factuais, ela é predominantemente uma história moral, com um claro sentido do que é certo e do que é errado, em que os atores e os eventos são colocados de um lado ou de outro.

A perspectiva ideacional do populismo enfatiza a força causal das ideias e propõe que estas, expressas na retórica dos líderes, influenciam as atitudes e o comportamento dos eleitores. A representação do mundo social pelos dirigentes políticos parece ativar certas predisposições entre os cidadãos. Assim, uma retórica pluralista – como a de Barack Obama – tende a despertar sentimentos de aceitação em relação às diferenças entre os cidadãos. Em contrapartida, a retórica populista – como a de Donald J. Trump – ativa orientações intolerantes em face do que é distinto, cuja manifestação extrema é a polarização. Em outras palavras, as características da narrativa populista parecem desencadear emoções que tendem a endurecer e radicalizar as atitudes dos cidadãos de uma forma que não apenas os torna mais distantes uns dos outros, mas também menos dispostos a cooperar – e até mesmo coexistir – uns com os outros. Nesse sentido, a retórica populista parece alimentar a denominada polarização afetiva, definida na literatura da ciência política como a existência de intensa afinidade ou simpatia entre os membros do mesmo grupo social e, ao mesmo tempo, intenso antagonismo e hostilidade em relação a outros grupos sociais.

A polarização afetiva ameaça a coexistência social e constitui um desafio para os valores e as instituições democráticas. Os perigos da polarização são acentuados em um contexto como o atual, no qual as capacidades dos regimes democráticos de processar a representação política estão sofrendo um esgotamento significativo em boa parte do mundo. Esse fenômeno, que foi denominado fadiga da democracia, está ocorrendo em sociedades que, ao contrário da narrativa binária e maniqueísta própria do populismo, são cada vez mais plurais, diversas e complexas. Nas mesmas bases da fadiga e da deslegitimação das democracias, parecem surgir a narrativa populista e a polarização afetiva.

A polarização afetiva tem implicações importantes em termos de ordem social e conflito. Nas palavras de Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, fortes identidades de pertencimento a grupos podem alimentar a discórdia em relação a grupos diferentes. Em um contexto de polarização afetiva, tais sentimentos identitários – sejam eles baseados em clivagens políticas, sociais ou culturais – podem se tornar excludentes, expulsando da legitimidade da arena política democrática outros grupos. Como consequência, a polarização afetiva pode levar a conflitos entre esses grupos. De acordo com esse argumento teórico, pesquisas empíricas em ciência política e economia indicam que a polarização afetiva certamente aumenta a probabilidade de conflitos, inclusive violentos.

O fenômeno da polarização afetiva, alimentado pela narrativa populista, poderia ser mais adequado do que a própria desigualdade socioeconômica para explicar certos conflitos na América Latina. Um argumento a favor dessa ideia é a observação de que a desigualdade permaneceu constante e até diminuiu significativamente em vários países da América Latina, onde, no entanto, surgiram diferentes formas de conflito político e social. Como aponta o relatório do PNUD Segurança cidadã com um rosto humano, nossa região teve um crescimento econômico de 4,2% anual nos últimos dez anos. Setenta milhões de pessoas saíram da pobreza, a desigualdade diminuiu na maioria dos países e o desemprego caiu desde 2002. Entretanto, a agitação política e social aumentou. A polarização afetiva gerada “desde cima”, ou seja, no nível das elites políticas, poderia ser um fator explicativo para vários episódios de conflito na América Latina, como as manifestações e os protestos violentos no Chile, Peru, Equador e Brasil.

Em conclusão, a narrativa populista no nível das elites políticas poderia ser a causa da polarização afetiva no nível dos cidadãos. Há evidências recentes desse fato em vários países da região, como Argentina e México. Entretanto, há pouco trabalho empírico sobre o assunto. A agenda dos estudos de psicologia política na América Latina precisa abordar de forma mais sistemática os vínculos entre a narrativa populista e a polarização afetiva. É fundamental que a ciência política contribua para interromper o processo de deslegitimação da democracia. Caso contrário, a fadiga democrática pode levar a regressões autoritárias, não mais “de fora” (como nos clássicos golpes de Estado do passado), mas “de dentro”, ou seja, por meio de processos de desdemocratização liderados por líderes eleitos. A sobrevivência da democracia está em risco.

Autor

Profesor de Ciencia Política de la Universidad Autónoma de Querétaro. Actualmente, es becario de la Fundación Carolina y Profesor Visitante de la Universidad Complutense de Madrid. Es miembro de WAPOR América Latina

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