As mudanças na situação política chilena provocaram uma grande surpresa na região. Os resultados das eleições para o Conselho Constitucional no domingo, 7 de maio, produziram manchetes que destacam uma reviravolta espetacular. O jornal espanhol El País publicou um editorial intitulado “Volantazo en Chile”, cuja primeira linha dizia: “as eleições de domingo no Chile viraram o cenário político de cabeça para baixo”. E o analista chileno Claudio Fuentes perguntou: “Como explicar a mudança abrupta de uma onda progressista para uma ressaca conservadora no Chile?”
Como costuma acontecer, o problema não está na dificuldade da resposta, mas no erro em que a pergunta se baseia. No Chile, não houve uma reviravolta no cenário político, que já vinha claramente escorado desde a derrota do plebiscito de setembro passado, quando dois terços do eleitorado rechaçaram a proposta constitucional anterior, elaborada por um Conselho Constitucional majoritariamente de esquerda. Mas, acima de tudo, o ponto de partida da pergunta é infundado, porque não houve uma onda progressista com a eleição de Boric, como se proclamou na época.
Para compreender melhor a miragem política que ocorreu na época, é necessário examinar dois componentes principais. O primeiro refere-se à verdadeira dimensão da vitória eleitoral. Se naquela ocasião, só 56% do eleitorado havia votado e Boric obteve pouco mais da metade desses votos, isso quer dizer que o presidente eleito tinha apenas 27% do eleitorado total. Mas, além disso, as pesquisas de opinião mostraram que sete em cada dez dos quase três milhões de votos em sua candidatura naquele segundo turno vieram de outros partidos (de centro-esquerda), que não seguiriam Boric no futuro. Ou seja, a “ampla maré eleitoral” de Boric apenas superou um quinto do eleitorado.
O outro elemento da miragem alude à ideia de que o apoio a Boric foi um produto direto do espírito imparável da explosão social de 2019. As pesquisas de opinião mostravam que o apoio ao que aconteceu em 2019 era bem menor do que se supunha. Vários observadores notaram que os feitos haviam sido “celebrados em excesso”. Na realidade, mais da metade da população chilena tinha uma visão crítica do acontecido.
O outro problema complementar que Boric enfrentou foi que ficou em minoria no Congresso. Poucos meses depois, isso levou à rejeição da reforma tributária, seu projeto estrela, com o qual pretendia arrecadar 3,6% do PIB em quatro anos, cerca de 10 bilhões de dólares, o que lhe permitiria desenvolver seu programa socioeconômico. Isso confirmou que Boric não poderia contar com o apoio contínuo das forças progressistas que lhe permitiram ganhar as eleições presidenciais.
Sendo assim, é difícil afirmar que o Chile sofreu um giro dramático, de uma onda progressista para uma puramente conservadora. Em todo caso, a eleição acentuou a tendência conservadora, algo que também é discutível. É verdade que o Partido Republicano de Kast obteve quase a metade dos assentos no Conselho e que seus 23 assentos, somados aos 11 obtidos pela direita tradicional, deixam em suas mãos a configuração da nova Constituição chilena.
Portanto, a interpretação de que o resultado significa um deslocamento do eleitorado chileno para a extrema direita é bastante arriscada. Na verdade, esse resultado eleitoral também pode significar que o Chile profundo deu definitivamente as costas ao governo de Boric e se manifesta distanciando-se o máximo possível de seu projeto político, que considera muito radical.
Não se pode esquecer que, na maioria dos países da região, há uma brecha importante entre as atitudes políticas das minorias ativas e as do país profundo. Trata-se de uma lacuna que pode aumentar sua dimensão em determinadas conjunturas históricas. Nesse contexto, tudo parece indicar que o Chile atravessa uma dessas conjunturas.
Assim, em atividades políticas protagonizadas pelas minorias ativas, predomina a tendência de esquerda, como sucedeu nos protestos de 2019. Mas quando se trata de uma atividade que envolve o Chile “profundo”, como ocorre quando há eleições obrigatórias, a orientação conservadora predomina claramente. No caso do Chile, se estuda bastante a existência de bolsões de cidadãos com uma cultura política de baixíssima qualidade, refratários à política, herança em boa medida da marca procedente da experiência pinochetista.
Mas essa orientação conservadora do Chile profundo não deveria levar à conclusão de que a maior parte do eleitorado chileno rejeita a promulgação de uma Constituição democrática que deixa para trás a atual, criada durante a ditadura. De fato, não seria surpreendente se, no final, o eleitorado se movesse para uma solução centrista, talvez até para uma recuperação reduzida da velha tradição política do Chile dos “três terços” entre direita, centro e esquerda.
Autor
Enrique Gomáriz Moraga tem sido pesquisador da FLACSO no Chile e outros países da região. Foi consultor de agências internacionais (UNDP, IDRC, BID). Estudou Sociologia Política na Univ. de Leeds (Inglaterra) sob orientação de R. Miliband.