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O brasil de todos os dias

A velocidade e o grau de inovação com que os eventos políticos acontecem no Brasil sugerem ao espectador que avalie a cada momento suas conseqüências imprevisíveis. Assim nos tem acostumados este gigante sul-americano desde o ano 2013. Em junho daquele ano, manifestações multitudinárias em todo o país alarmaram o próprio Palácio da Alvorada, residência oficial da ex-presidente Dilma Rousseff. A pauta era diversa: desde a crítica ao aumento do preço do transporte público e da violência policial, à rejeição do enorme gasto público para organizar grandes eventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, à luta contra a corrupção e os privilégios da classe política. A leitura política dessas mobilizações não foi nada fácil, muito menos para o governo, o Partido dos Trabalhadores (PT) e a esquerda em geral. Aquela multidão na rua como expressão do descontentamento político como antigas ferramentas do binarismo ideológico, da direita ou da esquerda política, parecia incompreensível.

Muitos se perguntavam como era possível que uma tremenda “pressão social” surgisse no meio de um ciclo político supostamente bem sucedido, como o representado por Lula da Silva e depois Dilma Rousseff. No auge do “projeto popular do PT”, os jovens inicialmente saíram às ruas, lançando demandas enquanto novas discussões se instalavam sobre racismo institucional, degradação ambiental ou deslocamento de pessoas de seus locais de residência devido a obras para grandes eventos. As redes sociais como o Facebook e o Twitter tiveram um papel fundamental no crescimento diário das manifestações e a polícia não ficou de braços cruzados.

os cidadãos começaram a enfrentar as contradições que permaneceram ocultas e que explicam em parte o atual alto desemprego (14%) e a estagnação econômica desde 2015.

Em meio a um Brasil “cheio de graça”, os cidadãos começaram a enfrentar as contradições que permaneceram ocultas e que explicam em parte o atual alto desemprego (14%) e a estagnação econômica desde 2015. Tudo parecia indicar que para os brasileiros as coisas não estavam indo tão bem apesar da narrativa do governo. Enquanto 0,7% do orçamento do Estado foi destinado aos mais necessitados, através do “Bolsa Família”, a existência de um Brasil de “capitalismo de laços” começava a ser descoberto, ligando o governo a grandes construtoras como Odebrecht e OAS, bancos, “barões do agronegócio” e frigoríficos, como a JBS, recentemente envolvida em um escândalo de corrupção com o atual presidente, Michel Temer.

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por exemplo, tinha uma linha de crédito para grandes empresas, com taxas de juros bem abaixo da inflação. Em 2014, as grandes empresas receberam 117 bilhões de reais, de um total de 187 bilhões distribuídos pelo banco. No mesmo ano, segundo a Confederação Nacional do Comércio, 61,9% das famílias brasileiras estavam endividadas.

Para muitos analistas, 2013 seria o “grau zero” de uma nova configuração política do país: seria o início do fim de um ciclo político iniciado em 2003 com a primeira presidência de Lula da Silva, a hegemonia política e cultural do PT e outros partidos de esquerda orbitando em torno de sua influência. Assim, sem uma narrativa de “transcendência política”, nem um projeto de futuro, a sociedade brasileira iniciaria um processo político, caracterizado por uma polarização insuspeitada.

2014 e 2015 foram acompanhados por mais mobilizações. A campanha eleitoral de 2014 dividiu o país em dois: os que apoiaram a reeleição de Dilma e os que se opuseram a ela. A tensão política continuou a aumentar, a ideia de “impeachment” foi estabelecida, e em agosto de 2016 a presidente foi finalmente separada do cargo, o que foi assumido pelo vice-presidente, Michel Temer. Imediatamente, as mobilizações de seguidores do governo começaram um novo ciclo de protestos, agora em torno do “Fora Temer”, mas lentamente as mobilizações iriam perdendo força.

A crise política atingiu um novo pico e atingiu dimensões surreais quando, em junho passado, a Procuradoria Geral da República denunciou o presidente Michel Temer por corrupção passiva. Desde a saída de Dilma, executivos da Odebrecht e da JBS têm envolvido grande parte da elite política em casos de corrupção. No entanto, as ruas não recuperaram o seu protagonismo perdido.

Mas o silêncio das ruas se tornou mais perceptível depois que o juiz Sergio Moro condenou Lula a 9 anos de prisão. Em diferentes cidades, atos políticos foram organizados em apoio a Lula e grandes manifestações foram planejadas, mas o escasso comparecimento, reduzido à militância mais leal, gerou uma nova perplexidade. Lula da Silva não falou ao país naquele dia, apenas aos seus mais leais seguidores.

Acontecimentos recentes mostram que os brasileiros, nem de um lado nem do outro do espectro político, estão se manifestando nas ruas como nos últimos anos. A população intui que a ação política não parece resolver os seus problemas quotidianos. E tomar uma posição para o “Fora Temer” e abrir a possibilidade de novas eleições pode, para muitos, ser um passo arriscado em uma situação econômica incerta e de desconfiança em relação ao sistema político em geral. Portanto, mais do que cansaço ou indiferença, a sociedade brasileira lembra a sensação de viver em uma realidade dual semelhante àquela vivida na decadência da União Soviética: uma vida pública envolvida no absurdo, na ironia e na auto-contemplação de alguns, e uma vida privada cinicamente honesta, uma mistura de alienação, rebelião e criatividade. Este é o Brasil de todos os dias.

Foto de Carlos Varela em Trend hype / CC BY

Autor

Fundador de Latinoamérica21. Jornalista. Mestre em Jornalismo pela Universidade de Barcelona e em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Complutense de Madri.

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