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O Brasil enfrenta uma nova ameaça de ruptura democrática

O Brasil vive dias trágicos de dramas pessoais e coletivos no meio da crise pandêmica. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), em curso no Senado Federal para investigar as ações do presidente, captou a atenção dos brasileiros como se fosse um reality show. Os testemunhos, mesmo os mentirosos ou contraditórios, descrevem um governo insensível que recusou o acesso a vacinas e encorajou o uso de drogas ineficazes e perigosas. Um presidente que repetia por diversas vezes ao seu séquito de fanáticos que seria necessário permitir que 70% da população fosse infectada para deter a pandemia, até que as mortes fossem tão elevadas que ele pudesse sofrer um impeachment. Os erros e omissões do governo, revelados pela investigação, são suficientes para apoiar casos de responsabilidade criminal no Congresso e casos de direito comum no Supremo Tribunal.

O pior momento em 150 anos

O país está no seu pior momento em 150 anos. Tem atravessado uma crise econômica desde 2013. Em 2015-2016 atravessou a pior recessão desde 1929 e, antes da recuperação da economia, a pandemia forçou a interrupção de grande parte da atividade econômica. Em 2020, a economia caiu 4,1%. E em janeiro de 2021, cerca de 27 milhões de pessoas viviam abaixo da linha de pobreza extrema, segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Os rendimentos do trabalho, segundo a mesma fonte, diminuíram em média 19%, e entre os jovens, mulheres e negros em cerca de 23%. A inflação acumulada de 12 meses foi de 6,76%, nos primeiros quatro meses de 2021, a mais elevada desde dezembro de 2016 e as estimativas indicam que está a aumentar, o que poderá ter um efeito devastador na popularidade do presidente.

A desaprovação de Bolsonaro, em alta desde o início do ano, atingiu 45% em maio de 2021, de acordo com a Datafolha e a aprovação, de 24%, nunca foi inferior. A maioria, 58%, já não o considera capaz de liderar o país e um presidente impopular paralisa o processo de tomada de decisões, produzindo estagnação e crise.

A pandemia acrescentou um ingrediente explosivo. Em junho de 2021 o país contava cerca de 17 milhões de infectados e meio milhão de mortos, com uma tendência ascendente. Esse avanço descontrolado da doença e a inadequação do programa de vacinação foi o que levou à convocação da comissão de investigação do Senado.

As provas documentais e testemunhos demonstraram o grau de negligência e negação do governo de Bolsonaro em relação à pandemia, o que levou à primeira grande manifestação a exigir o seu impeachment desde o início da epidemia. A maioria das análises dos processos de impeachment considera as manifestações de rua como uma condição necessária, embora não suficiente. Outra condição, tal como a necessidade de uma investigação, já ocorreu.

A politização das Forças Armadas

Vários acontecimentos recentes mostram uma politização inusual de oficiais ativos e reformados das três Forças, que participam extensivamente no governo Bolsonaro ocupando ministérios e posições de segundo e terceiro escalão. Neste contexto, a recusa do comando do Exército em sancionar o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, um general ativo, por participar numa manifestação política com Bolsonaro – expressamente proibida pelo Regulamento Disciplinar do Exército – suscitou grande preocupação.

Pazuello, agora conselheiro presidencial na Secretaria dos Assuntos Estratégicos, poderia ser processado pelo Senado por um crime contra a saúde pública. Bolsonaro talvez imagine que o episódio da subordinação do Exército, aceitando o veto presidencial a uma sanção estatutária, servirá também para intimidar os senadores. No entanto, tem uma minoria na comissão de investigação e no Senado.

Foto de Palácio do Planalto en Photer.com

Bolsonaro apelou a manifestações em reação às investigações, à ameaça colocada pelo ex-presidente Lula ao seu projeto de poder e à perda de popularidade. E tal como em outros casos ele apareceu a cavalo, como Mussolini costumava fazer, neste caso ele pediu um desfile de motocicletas, imitando o desfile fascista dos anos 30. A imitação aberta da estética fascista não é fortuita, é deliberada.

Recentemente, um conselheiro do governo ligado ao presidente e aos seus filhos fez um gesto de supremacia americana durante uma declaração do ex-chanceler Ernesto Araújo na Comissão de Relações Exteriores do Senado. Bolsonaro convidou o ex-ministro Eduardo Pazuello, para o acompanhar num ato político, sabendo que estaria a desrespeitar os regulamentos disciplinares do exército e que o comando tentaria sancioná-lo.

O presidente está a testar os limites institucionais da democracia brasileira, enquanto eles desconfiam das suas atitudes. Ainda assim, a CPI já tem elementos para denunciar Bolsonaro, Pazuello e vários outros funcionários do governo por incumprimento na pior crise de saúde pública do país, segundo o presidente e relator da comissão.

Há uma convergência explosiva de acontecimentos críticos no país. São mais do que perturbadores da ordem institucional democrática, são fatores desestabilizadores. A crescente indignação popular com o tratamento da pandemia e da crise econômica e social provocam insegurança coletiva, medo e reações iradas que se refletem na pressão sobre Bolsonaro nas ruas.

Confrontado com investigações que poderiam levar a um impeachment, o presidente ameaçou publicamente decretar um estado de sítio e utilizar o exército para garantir a ordem pública. A subordinação do comando do Exército a Bolsonaro, não cumprindo a determinação do regimento em punir os atos de indisciplina e violação da hierarquia, implica um novo risco institucional.

Hierarquia e disciplina são regras de ouro que sustentam os pilares da corporação militar. A aceitação da quebra de ambos por um general ativo pode ter um efeito dominó, desencadeando manifestações políticas de oficiais e soldados de patente inferior, até então contidas por estas regras consideradas inquebráveis.

Um sério risco institucional para a democracia

A politização dos militares representa um sério risco institucional para a democracia. Só com a sua ajuda é que o Bolsonaro poderia fazer uma transição para um regime autocrático. Esta convergência de fatores de desestabilização político-institucional num macroambiente de crise é extremamente perigosa para a democracia brasileira.

Para complicar ainda mais o quadro, Bolsonaro mostra sinais cada vez mais claros de que pode não aceitar um resultado desfavorável nas eleições do próximo ano e já começou, como Trump fez nos Estados Unidos, a espalhar suspeitas de fraude eleitoral. Afirma que teria sido eleito no primeiro turno em 2018 se não houvesse fraude e que uma nova fraude está a ser preparada para o derrotar em 2022. Disse também que não aceitará um resultado “suspeito”.

A questão-chave é se os militares lhe darão a cobertura de que necessita para anular as eleições. Sem apoio militar, Bolsonaro carece de força e será apenas um governante incidental que chegou ao poder numa eleição inusual e poderá ser expulso noutra inusual eleição.

Foto del Ministerio de Defensa en Foter.com

Autor

Sociólogo e escritor. Analista da rádio CBN. Últimos livros: "Presidencialismo de Coalizão: Raízes e Evolução do Modelo Político Brasileiro" (2018) e "O tempo dos governantes incidentais" (2020). Prêmio Literário Nacional Pen Clube do Brasil, 2018.

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