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O despertar cubano: manifestações versus discursos

Domingo, 11 de julho de 2021 ficará na história de Cuba como um dia singular. Atingida por um dos maiores picos pandêmicos de sua história, e em difíceis condições econômicas e financeiras, as redes sociais surpreenderam o mundo com uma marcha popular pacífica, crescente e espontânea, com uma presença majoritária de jovens e sem a convocatória de grupos de oposição ou lideranças visíveis no município de San Antonio de los Baños, provincia de Artemisa, a leste de Havana.

Em poucos minutos, idênticas expressões públicas de descontentamento popular se sucederam em mais de trinta cidades e vilas em toda a ilha. Chama a atenção não só o crescente espiral de participação, mas o conteúdo explicitamente político de suas demandas: LIBERDADE, PÁTRIA E VIDA, e ABAIXO A DITADURA. 

A simultaneidade das marchas, graças à internet e às redes sociais, parece ter surpreendido as autoridades. Quando o presidente Miguel Díaz-Canel chegou a San Antonio, as manifestações já tinham adquirido um caráter nacional e eram um relevante sucesso internacional. Pela primeira vez em 62 anos de Cuba pós-revolucionária, assistimos a livre apropriação do espaço público e a expressão de um povo acostumado às rotinas e rígidos controles manipulativos do Estado.

Tal agravamento teve seu correlato em um dos discursos mais agressivos e radicais de um presidente cubano. O presidente interino, visivelmente decomposto e em termos discursivos absolutamente militares, – talvez reproduzindo fielmente um mandato superior – deu a ordem de combate: “revolucionários às ruas para enfrentar corajosamente estas manifestações contrarrevolucionárias”.

Mais uma vez, a velha retórica polarizadora de “revolucionários” versus “mercenários vendidos ao império”. Pouco depois de seu discurso público ameaçador, as imagens nas redes sociais apresentaram lamentáveis atos de violência pública, repressão e prisões em massa em todo o país.

Para a narrativa oficial, o evento incomum responde a uma “reação provocada” por uma estratégia intervencionista voltada para a mudança de regime, reforçada pela capacidade das redes sociais de replicar certas histórias distorcidas, “fake news”, cujo objetivo é estimular a desorientação emocional, a ansiedade e a angústia existencial, bem como confundir os “revolucionários” sobre as verdadeiras causas das situações de crise.

Os autores dessa estratégia “milagrosa” seriam as agências e laboratórios de guerra não convencionais dos EUA. Portanto, as manifestações populares teriam sido provocadas por agentes externos pró-anexionistas, mascarados no falso humanismo das teorias de “intervenção humanitária”. A solução retórica será, mais uma vez, sugerir “paciência, unidade e ações organizadas do Estado frente ao cruel bloqueio imperialista”.

Um dia depois, ao ouvir os discursos do presidente e dos ministros, a causa das explosões sociais se reduz ao impacto do bloqueio norte-americano sobre a economia e as finanças do país. Não é menos verdade que a administração Trump limitou de forma importante qualquer tentativa de intercâmbio com Cuba, elevando o custo de acesso a tecnologias e recursos internacionais para o governo cubano. Mas reduzir a complexidade do momento ao embargo comercial demonstra que a “nova” geração de dirigentes políticos herda a miopia ideológica dos líderes históricos. Os efeitos cumulativos das deformações estruturais do socialismo cubano apenas merecem uma menção, quando elas poderiam muito bem ser as causas determinantes.

O enquadramento ideológico das decisões econômicas por seis décadas, a obstinada e irreal concepção monopolista do Estado como eixo articulador do sistema econômico, a contínua negação do potencial inovador da iniciativa privada e do investimento estrangeiro são alguns dos mecanismos que freiam o desenvolvimento produtivo.

Ordenar o caos é uma tarefa impossível; daí o estrondoso fracasso da Tarefa Ordenamento, e seu impacto negativo sobre o bem-estar popular. Especificamente, a unificação financeira e a abertura de lojas em moeda livremente conversível (dólares americanos) que afetou de forma importante o acesso a produtos de primeira necessidade, acentuando as diferenças sociais e a precarização da vida cotidiana.

Do ponto de vista político, todas as tentativas de organização e expressão de visões e interesses divergentes da sociedade civil têm sido minimizadas, difamadas ou reprimidas pelo Estado. A ambiguidade jurídica e o uso difamatório da mídia oficial contra setores divergentes do mundo cultural, jornalístico ou minorias emergentes tem sido a norma, (re)ativando tensões acumuladas e uma crescente percepção de exclusão e conflito. No entanto, o mito da identidade “Estado-PCC-povo” – outra das deformações estruturais do regime – parece ter sido quebrado no domingo passado.

Embora no caso cubano, a crise econômica antecede o impacto pandêmico, as autoridades deveriam ter previsto os altos custos do “pico pandêmico” em condições sanitárias limitadas. O drama humano da constante ameaça de contágio e da letalidade do vírus traduz a crescente incerteza do entorno em ansiedade, frustração, medos e emoções diversas.

Finalmente, as manifestações maciças respondem a múltiplos fatores acumulados e de contexto, internos e externos, falta de bem-estar e crise de expectativas. O fator surpresa para o governo reflete sua desconexão das precárias condições de vida do cubano médio, e deve sugerir-lhe os limites da legitimidade e a necessidade constante de todo Estado de flexibilizar seus mecanismos de participação e inclusão em condições de bem-estar e liberdades públicas.

A violência que temos testemunhado reflete os ódios e fobias cultivados durante décadas, e a incapacidade do Estado de proporcionar espaços reais de participação social. A dicotomia radical utilizada pelo presidente para se referir ao povo como “revolucionários” ou “contrarrevolucionários” visibiliza a incapacidade da atual liderança cubana para convocar um diálogo de refundação nacional inclusivo e respeitoso para TODOS os cubanos.

É frustrante ver esta “nova” geração de políticos cubanos repetindo slogans ideológicos históricos sem conexão com a vida cotidiana dos cubanos comuns. Talvez isso explique o desdém pelos slogans de domingo; não eram delinquentes ou mercenários, eram jovens cubanos gritando LIBERDADE, PÁTRIA, VIDA, ABAIXO A DITADURA.

* Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima

Autor

Profesor e investigador de la Univ. Iberoamericana (Ciudad de México). Doctor en Ciencia Política por FLACSO-México. Especializado en historia institucional republicana de Cuba, transición política y democratización.

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