Na última sexta-feira, 06/06, uma onda de protestos contra o Immigration and Customs Enforcement (ICE) e a política migratória de Donald Trump tem ganhado força nas ruas de Los Angeles e Paramount. Agentes do ICE realizaram operações de busca e detenção de trabalhadoras e trabalhadores indocumentados. Pelo menos, 44 pessoas foram violentamente presas por agentes mascarados e encaminhadas ao prédio federal do ICE no centro de Los Angeles.
As abordagens, sem mandados, geraram críticas sobre uso excessivo de força, possível violação de direitos e perfilamento racial. A maioria dos detidos eram trabalhadores de baixa renda, muitos não estavam indocumentados e nem sequer apresentavam antecedentes criminais. E havia lideranças comunitárias. No final da tarde, os protestos cresceram em frente a esse prédio, sendo reprimidos com violência, seguida do aumento dos protestos pelas ruas da cidade.
A polícia de Los Angeles, o FBI e, desde sábado, 2 mil soldados da Guarda Nacional foram acionados, sem um pedido prévio de ajuda do governador do estado, Gavin Newsom. Se trata da uma medida inédita no país nos últimos sessenta anos. Em seguida, o Pentágono anunciou o envio de 700 fuzileiros navais como reforço. Tudo com o objetivo de reestabelecer a ordem e assegurar a continuidade das operações do ICE.
Apesar da magnitude da mobilização, os noticiários limitam-se a apresentar o ICE apenas como o Serviço de Imigração e Alfândega dos EUA. Raramente explicam o que ele de fato é, quem o comanda, como opera, em que contexto histórico surgiu, ou qual é sua visão sobre quem deve ser vigiado, detido ou deportado.
O 11 de setembro está entre nós
O ICE é uma das agências do Departamento de Segurança Nacional (Department of Homeland Security – DHS), criado nos EUA, em 2002, após os ataques de 11 de setembro. Inicialmente, o foco do DHS era combater o terrorismo. Mas, em pouco tempo, a presença de determinados grupos estrangeiros passou a ser tratada como questão de segurança nacional. O DHS passou a agir contra estrangeiros, mesmo sem relação com o terrorismo. Em 2003, junto com o ICE, surgiu o Serviço de Alfândega e Proteção de Fronteiras (Customs and Border Protection – CBP). O CBP controla as fronteiras, enquanto o ICE atua no interior do país.
Desde então, o ICE é marcado por denúncias de abusos e violações. Elas ganharam força durante a gestão Obama, com o programa “Comunidades Seguras”, de 2008. Esse controverso programa permitia que policiais atuassem como oficiais de imigração, identificando indivíduos para deportação e enviando-os à custódia do ICE. Em seguida, o ICE ganhou mais notoriedade na gestão Trump, com a política “Tolerância Zero”, que gerou um aumento de detenções e deportações, incluindo separações familiares. Agora, volta às manchetes com os conflitos na Califórnia.
Republicanos e Democratas
Embora críticas à administração Trump sejam comuns, o ICE não é uma criação exclusiva dos republicanos. Sua fundação resultou de apoio bipartidário, durante a gestão de George W. Bush e com votos de democratas como Joe Biden, Barack Obama e Hillary Clinton. O DHS, ao qual o ICE está vinculado, é uma agência estatal permanente, parte da estrutura do governo dos EUA, e não uma criação temporária ou de um único partido. Ambos os partidos, apesar dos discursos levemente distintos, sustentam políticas migratórias rigorosas e excludentes.
Não esqueçamos que Democratas muitas vezes suavizam o discurso, mas mantêm práticas firmes. Durante o governo Obama, por exemplo, atingimos recordes em número de deportados. Kamala, apesar de seu tom progressista, durante a gestão Biden, viajou pela América Latina firmando acordos para barrar estrangeiros indesejados. A repressão é partilhada, ainda que com outra linguagem e estratégia política.
Sorria, seus dados foram roubados!
Ao ver imagens do conflito na Califórnia, você deve se perguntar: como o ICE consegue localizar locais de trabalho, trabalhadores e ativistas políticos? Esse é outro ponto pouco discutido sobre o ICE: sua ligação com os serviços de mineração de dados produzidos pela Palantir Technologies. Financiada inicialmente pela CIA, em 2003, logo após o 11 de setembro e a criação do DHS, essa Big Tech nasceu no Vale do Silício com um discurso nacionalista, pró-Ocidente e uma missão: rastrear potenciais “ameaças” à segurança nacional. Desde então, tornou-se essencial para o ICE na perfilação social de estrangeiros indocumentados.
Dados biométricos e pessoais — como localização, mensagens de texto e contatos de plataformas como WhatsApp, Facebook, Instagram e até SMS — são minerados pela Palantir e repassados ao ICE, através de contratos milionários pagos com dinheiro de contribuintes documentados e indocumentados que trabalham nos EUA. Essa infraestrutura digital se fortaleceu sob Obama, radicalizou-se com Trump e segue ativa. Curiosamente, o nome “Palantir” vem do universo do Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien.
Artefatos criados por elfos, as Palantíri, serviriam para monitorar ameaças, manter a ordem e preservar alianças entre os reinos. Nesse enredo, nós, latino-americanos, somos a ameaça que deve ser rastreada pelo ICE. Não estamos falando apenas de trabalhadores indocumentados, mas de todos que não fazem parte do que os EUA e seus aliados definem como “Ocidente”.
Laboratórios de repressão, violência e vigilância
Matérias investigativas demonstram que essa agência mantém forte intercâmbio com o exército israelense, refletindo laços profundos entre o DHS e o sionismo, que utiliza tecnologias avançadas para o extermínio de palestinos na Palestina. Big Techs como a própria Palantir, além de gigantes militares dos EUA (Northrop Grumman, Boeing, Lockheed Martin, General Dynamics e RTX) e de Israel (Elbit Systems), têm atuação direta em zonas de conflito e controle de fronteiras. Verdadeiros laboratórios a céu aberto.
Com profissionais em altos cargos governamentais ou financiando campanhas eleitorais, essas empresas garantem contratos bilionários para vender armas nas fronteiras do México e em Gaza. Aplicam tecnologias de armamento e mineração de dados para reprimir e dominar populações inteiras. Nas palavras de Alex Karp, CEO da Palantir, “Tempos difíceis significam finanças internas fortes. Tempos difíceis são muito bons para a Palantir”.
Isso deixa claro que o conflito ultrapassa a questão migratória. É uma sádica luta racial e de classe. Ainda que seja cedo para prevermos os desdobramentos que os protestos na Califórnia terão sobre as políticas sociais e trabalhistas dos EUA, uma coisa é certa: ela revela uma onda de insatisfação. Essa insatisfação vem de trabalhadores e trabalhadoras (documentados ou indocumentados), majoritariamente, localizados em postos de trabalho com baixa remuneração e proteção social.
E a insatisfação com um mundo mergulhado em uma crise cuidadosamente gestada desde 2008. Uma crise que, por um lado, enriqueceu exponencialmente sombrias companhias do Vale do Silício e a indústria armamentista nos EUA e do outro lado empurrou como única saída a política de austeridade para populações historicamente marginalizadas. O discurso do terror transformou-se em uma eficiente política de controle e extermínio.