Co-autor Emmanuel Guerisoli
O recente massacre racista em Buffalo tem uma história global que o antecede. Na verdade, o “manifesto” de 180 páginas do terrorista elogia a Argentina em sua primeira página, por sua suposta situação racial. O assassino idealiza o país sul-americano através da mentira racista e delirante e afirma que a Argentina é o único país “branco” com uma alta taxa de natalidade que o defenderia dos inimigos da raça branca. De onde vem essa fantasia delirante de uma “Argentina branca”?
A Argentina é um país diverso, muitas vezes aberto, tolerante e generoso. E também é um país que, como muitos, tem uma longa história de fascismos e racismos múltiplos.
A “teoria da grande substituição”
O terrorista de Buffalo adere à chamada “teoria da grande substituição”, cujas origens remontam às ideias de degeneração social e racismo científico do final do século XIX. De acordo com elas, a superioridade civilizacional ocidental deveria ser mantida biológica e culturalmente para evitar o caos e o colapso social. Esta ideologia foi amplamente aceita pelas elites políticas em vários países dos dois lados do Atlântico e deu lugar a políticas eugenistas, segregacionistas, anti-imigratórias e, finalmente, fascistas e genocidas.
Nos anos 30, os nazistas radicalizaram a mentira de uma conspiração judaica cuja finalidade era organizar uma mistura de raças, levando a um extermínio das populações brancas a nível mundial. Desde então, a ideia do “genocídio branco” foi utilizada por organizações fascistas e afins durante a Guerra Fria para justificar a violência política em nome da defesa existencial de nacionalismos étnicos.
Nos anos de 1970, a Confederação Anti-comunista Latino-americana introduziu noções de “genocídio e supremacia branca” que influenciaram as doutrinas das agências responsáveis pela Operação Condor. As ditaduras da Bolívia, Chile e Paraguai foram muito receptivas a tais ideias devido, em parte, à presença de ex-nazistas e ex-ustaše – uma organização terrorista nacionalista croata baseada no racismo religioso e aliada ao nazismo – em altos cargos.
As juntas militares latino-americanas se percebiam como guerreiros de uma cruzada histórica contra uma conspiração global e em defesa da civilização ocidental cristã. Durante os anos 70 e 80, houve uma forte cooperação transatlântica entre os agentes das juntas, organizações europeias paramilitares e neofascistas como a P2, os governos do apartheid da Rodésia e da África do Sul, e elementos da extrema-direita estadounidense.
Essas relações deram frutos durante as guerras e massacres genocidas na América Central, nas quais a Argentina teve participação direta através do envio de “assessores” que eram especialistas em repressão ilegal. Isto nos permite entender de onde vem o delírio de uma América Latina com um papel central na defesa do Ocidente.
Não esqueçamos que o terrorista de Buffalo também disse que esta luta racial poderia começar em países como Argentina ou Venezuela e inclusive menciona o Uruguai como um dos países “ancorados na raça branca”, junto com a Austrália, Argentina, Nova Zelândia e Estados Unidos. De qualquer modo, por que o terrorista coloca a Argentina em um lugar central? Esta ênfase na nação latino-americana só pode ser entendida em termos de histórias compartilhadas e tradições fascistas, fantasias racistas transnacionais. São as memórias globais do fascismo internacional. Nos fóruns da internet, os extremistas do neofascismo global admiram a ditadura argentina e também Augusto Pinochet como atores que devem ser emulados.
Enquanto um dos fundadores do fascismo argentino, Leopoldo Lugones, defendia o imperialismo argentino por sua superioridade “branca” sobre outras nações latino-americanas, os generais da última ditadura militar (1976-1983), que mataram dezenas de milhares de cidadãos em sua “guerra suja” lançada em nome do “Ocidente cristão”, utilizaram uma lógica semelhante.
Em 1976, o General Videla salientou o caráter global da disputa: “a luta contra a subversão não se esgota em uma dimensão puramente militar”. Trata-se de um fenômeno mundial. Tem dimensões políticas, econômicas, sociais, culturais e psicológicas”.
Em particular, as ideias de substituição e invasão e as fantasias paranóicas sobre a expansão e migração de europeus não-brancos são fundamentais para a tradição fascista argentina. As infames declarações do General Albano Harguindeguy, Ministro do Interior sob a ditadura argentina, só podem ser entendidas nesta perspectiva histórica. Em 1978, Harguindeguy falou da necessidade de fomentar a imigração europeia para que a Argentina pudesse “permanecer um dos três países mais brancos do mundo”.
Este racismo explícito na Argentina tomou a forma de um reconhecimento aberto da necessidade de erradicar outras expressões “não européias” da nação. A profundidade e o alcance deste desejo se manifestou, mais uma vez, nos campos de concentração, que funcionavam como centros de clandestinos detenção e de tortura, nos quais o racismo e o anti-semitismo tinham um lugar central.
A luta contra o inimigo não tinha limites. A cooperação internacional entre organizações fascistas e supremacistas brancos continuou após o fim da Guerra Fria. Se antes lutavam para derrotar o comunismo em Angola, Chile ou Nicarágua, agora o inimigo era o Islã e o multiculturalismo, que o delírio anti-semita considera ser financiado pelo judaísmo.
Os atentados em Utoya, Munique, Pittsburg, El Paso, Christchurch e agora Buffalo, entre outros, são a continuação da violência fascista contra minorias às quais, em seu delírio ideológico, atribuem a futura destruição da civilização ocidental e dos valores cristãos.
O fascismo é e sempre foi transnacional. Não se pode entender esta história estadunidense com idéias de excepcionalismo porque quase nada é excepcional nas tradições fascistas estadunidenses. Ainda assim, é compreensível que muita atenção tenha sido dada às dimensões locais do fenômeno, se não tanto à história americana. Mas o que tem sido completamente ignorado até agora são as histórias globais do fascismo por trás desses ataques.
Emmanuel Guerisoli é advogado e doutorando em Sociologia e História na New School for Social Research (New York). Especialista em direito penal internacional, direito constitucional e direitos humanos. Mestre em Estudos Internacionais e Sociologia.
*Tradução do espanhol por Giulia Gaspar.