A congressista dos Estados Unidos Katie Porter pede a palavra durante a sessão do Comitê de Supervisão e Investigações em 27 de julho. Em seguida, liga seu telefone celular. Mostra ao público como ativar um filtro de segurança para obter acesso: escanear a impressão digital. “Por que é preciso mais passos para ativar meu telefone do que a arma de fogo de sua empresa?”, pergunta ao CEO de uma empresa de armas que participa virtualmente da sessão. Nos Estados Unidos, a compra e o porte de armas é um direito reconhecido constitucionalmente (segunda emenda), mas esta regulação não afeta só o país. Em 4 de agosto de 2021, o Governo Mexicano apresentou uma demanda contra onze fabricantes de armas de fogo, alegando responsabilidade pelos efeitos do comércio ilícito. Um ano desde o começo do litígio, aqui estão os pontos-chave.
Os argumentos do México
A ação civil foi apresentada na Corte do Distrito Federal em Boston por motivos estratégicos: no Estado de Massachusetts, a corrida para uma maior regulação do comércio e porte de armas é mais intensa. Também por motivos estratégicos, o México não processou os Estados Unidos pela regulação em matéria de armas (compra, venda ou porte), mas onze empresas de nacionalidade estadunidense (Smith & Wesson e outras).
Não se trata de uma controvérsia política ou diplomática, nem um litígio jurídico entre Estados, mas envolve empresas privadas. Por quê? O México argumenta que os fabricantes são responsáveis pela conduta negligente, já que promovem conscientemente o tráfico ilícito de armas de fogo e facilitam ativamente que as armas cheguem aos cartéis de drogas em seu território. E tudo isso enquanto crescem os lucros empresariais.
Além dos efeitos comerciais ou fiscais que a introdução ilegal de qualquer produto por um Estado pode gerar, o coração dos argumentos está nos efeitos deste ilícito: aumento da insegurança nacional ao tratar-se de armas projetadas conforme as necessidades e gostos dos grupos criminosos (por exemplo, sem medidas de segurança), maior gasto público em medidas de segurança (recursos humanos e materiais) e, consequentemente, uma diminuição do turismo (renda fundamental para o país).
Entretanto, as empresas e outras entidades não estão isentas do cumprimento das normas em matéria de direitos humanos, segundo o artigo 30 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Portanto, sua negligência contribui para a violação do direito à vida ou à integridade física das vítimas.
Enquanto isso, nos Estados Unidos…
Enquanto o processo judicial avançava na Corte Federal de Distrito em Boston, em 24 de maio de 2022 aconteceu um novo massacre com armas de fogo. Em uma escola primária de Uvalde, Texas, 19 crianças e dois professores foram assassinados. O Presidente Biden se pronunciou sobre o fato sem demora e enfatizou a importância de aprovar leis de armas de senso comum. “Não podemos e não vamos prevenir todas as tragédias. Mas sabemos que funcionam e têm um impacto positivo”, acrescentou.
Promover e aprovar normas jurídicas que limitem o porte de armas é suficiente? A resposta também está no discurso de Biden. Ele se referiu ao “marketing agressivo” que as empresas de armas têm desenvolvido nas últimas duas décadas, principalmente em relação às armas de assalto. Mas nada disse sobre os efeitos vinculados ao tráfico ilícito. Normas jurídicas que determinam maiores controles sobre os fabricantes, monitoramento de compras e vendas, limitações na publicidade ou a obrigação de incluir sistemas de segurança também teriam efeitos positivos no solo estadunidense (e mexicano). Sem limitações ou maiores controles sobre as empresas armamentistas, as ideias presentes no discurso de Biden se tornam ambíguas.
Direitos humanos e empresas
Dentro dos Princípios Orientadores sobre empresas e direitos humanos das Nações Unidas, o número 13 indica com claridade que as empresas devem evitar que suas práticas “provoquem ou contribuam para provocar consequências negativas sobre os direitos humanos e enfrentem tais consequências quando produzidas”. Conforme os dados do Ministério das Relações Exteriores do México, entre 70 e 90% das armas apreendidas em atividades criminais foram introduzidas ilegalmente dos Estados Unidos para o México. Os réus comercializam 68%, ou mais de 340 mil dessas armas.
A responsabilidade das empresas também está sob escrutínio em outras áreas: por exemplo, em matéria de saúde, as empresas de tabaco têm sido questionadas pela epidemia do tabagismo ou pelo papel que a indústria de alimentos e bebidas embalados desempenham nos ambientes alimentares saudáveis. Mesmo nos Estados Unidos há um precedente com semelhanças com a demanda mexicana: o National Prescription Opiate Litigation na Corte de Distrito de Cleveland, Ohio. Cidades e condados de West Virginia, bem como grupos indígenas responsabilizaram, por um lado, as empresas farmacêuticas por deturparem os riscos do uso de opioides receitados e, por outro, e as distribuidoras por negligência no controle de pedidos suspeitos. A fim de impedir que o litígio continue, em 26 de julho deste ano, três das distribuidoras acusadas (AmerisourceBergen, Cardinal Health e McKesson) anunciaram um acordo de cerca de 400 milhões de dólares.
Em resumo, os fabricantes de armas são responsáveis?
O México embarcou em um litígio histórico: processar onze fabricantes de armas estadunidenses no tribunal do Estadual de Massachusetts. O tráfico ilícito dos Estados Unidos tem um impacto direto no território mexicano (segurança nacional, aspectos fiscais, turismo), mas também nos direitos fundamentais daqueles que foram assassinados com as armas de fogo traficadas. Os fabricantes são responsáveis? Quem lê este texto provavelmente já tem uma resposta.
Autor
Professora e pesquisador da Univ. de Monterrey (México). Profesora de Direito Internacional Público e Rel. Internacionales (em exercício de licença) da Univ. de la República (Uruguai). Doutora em Rel. Internacionais pela Univ. Nacional de La Plata (Argentina).