Juan Bromley conta em Las viejas calles de Lima (As velhas ruas de Lima) que em 1601 uma inundação do Rímac destruiu parcialmente o quebra-mar que protegia o convento de San Francisco. A prefeitura então ordenou uma reparação que impediu a destruição total do quebra-mar pela corrente, que “se aproximou e comeu o local e a costa atrás do convento, onde há uma grande ravina e um despenhadeiro”.
A apenas duzentos metros dali se encontra atualmente o Palácio de Governo do Peru, onde o Presidente tem seu escritório. A distância entre a situação atual de Pedro Castillo e a do convento no início do século XVII é igualmente pequena: o quebra-mar político que o protege se encontra, em grande medida, colapsado, a corrente ameaça devorar o pouco que resta dele, e atrás dele se abre um grande despenhadeiro.
A obra com a qual Castilho pretende restaurar sua vala maltratada não é menor: nada menos que uma nova Constituição. Mas independente de suas dimensões, o projeto até o momento apresenta todas as características de um trabalho malfeito. Precisamente no mesmo ano em que a prefeitura de Lima reparou seu quebra-mar, apareceu pela primeira vez em castelhano a palavra “chapucero”, tomada do francês “chapuisier”: oficial que faz as obras grosseiramente, segundo o dicionário etimológico de Corominas.
Analisemos, então, os planos elaborados pelo arquiteto Castillo para sua construção. Comecemos pela forma: em um texto de apenas uma dúzia de páginas podem ser detectados cerca de trinta erros: ortográficos, gramaticais, sintáticos, de digitação e de formatação.
Passemos agora ao conteúdo. O documento conta com duas seções: o Projeto de Lei e o Memorando Explicativo.
A primeira, apesar de breve e majoritariamente técnica, inclui alguns detalhes que vale a pena prestar atenção. Afirma, por exemplo, que a Assembleia Constituinte terá um caráter popular e plurinacional. Até agora, o Peru não é um estado plurinacional. A Constituição vigente afirma que “o Estado reconhece e protege a pluralidade étnica e cultural da Nação” (artigo 2, inciso 19). Pluralidade étnica, não pluralidade nacional.
Não se trata aqui de negar o caráter plurinacional do Estado peruano, mas de alertar sobre uma contradição flagrante. Embora quase todo o documento seja dedicado à participação do povo e à exaltação da democracia (recordemos o caráter popular que atribui à Assembleia Constituinte), decreta, no entanto, a natureza plurinacional do Estado peruano com uma canetada, sem consulta prévia ao povo. O debate sobre a essência da nação, que em outros países alcança proporções fenomenais, é liquidado por Castillo em uma linha.
O Projeto de Lei continua indicando que o Plenário do Júri Nacional de Eleições regulamenta a distribuição de cadeiras na Assembleia Constituinte, e que esta deverá ser composta em 40% por representantes de organizações políticas, 30% por candidatos independentes, 26% por representantes dos povos indígenas e 4% por representantes dos povos afro-peruanos. Que distribuição de cadeiras é, então, a que o Júri Nacional de Eleições regulamenta se o Projeto de Lei já o fez?
Passemos para a Exposição de Motivos: O que o leitor imagina que encontrará lá? Talvez, como o nome indica, as razões para propor a redação de uma nova Constituição? Não crie expectativas, caro leitor: há tudo menos isso.
A primeira seção trata do Poder Constituinte e da reforma total da Constituição. Ou seja, explica – com surpreendente inópia – a capacidade do povo de se estabelecer como Poder Constituinte e a diferença entre uma reforma constitucional parcial e uma total. Não há rastro algum de argumentos que respaldam a necessidade dessas mudanças fundamentais, apresentando os defeitos e insuficiências da Constituição vigente.
A segunda parte, “Sobre o direito à participação pública”, aponta um lápis já apontado: exalta a importância da participação cidadã, como se o processo constituinte marcasse o fim de um período autoritário no qual a participação era cerceada ou diretamente proibida. Ele recorre a autoridades acadêmicas para dar peso, até mesmo uma certa solenidade, a conceitos tão óbvios como a democracia favorece a participação pública. Ele cita inclusive a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos como provas aparentemente necessárias para validar uma novidade radical: o direito à participação pública.
A próxima epígrafe segue rigorosamente a linha das anteriores: explica o desnecessário e deixa órfão de motivos o que requer justificativa. É dedicado aos momentos constituintes; ou, melhor dizendo, à teoria dos momentos constituintes. Porque não há mais do que categorias acadêmicas gerais; nem um mínimo de argumentação sobre por quê o Peru se encontraria em um momento desse tipo.
O desleixo do projeto alcança aqui um de seus pontos altos: cita uma peça acadêmica que descreve o momento constituinte como uma circunstância de consenso. Consenso! Um conceito interessante para se referir a uma iniciativa que apenas conseguiu reunir 50.000 assinaturas durante uma campanha que percorreu todo o país, liderada por Vladimir Cerrón, líder do Perú Libre, partido com o qual Castillo chegou à presidência.
Se trata de uma iniciativa que é prioritária para apenas 8% dos peruanos e que conta com a rejeição de 60% deles, segundo uma pesquisa da Ipsos, precisamente porque consideram que não é o momento adequado e que um processo de tal calibre requer uma discussão mais extensa; e que encontra a oposição de grande parte do arco parlamentar.
“Legislação comparada” é o título da epígrafe seguinte. Sob tal título, era esperada uma ópera magna que marcasse o destino do pensamento jurídico latino-americano. A realidade, porém, é um pouco menos generosa: três linhas. Sem exagero. Três linhas, com seus correspondentes erros de redação, seguidas por um gráfico faminto com suas correspondentes falhas de formatação.
A Exposição de Motivos continua com as posições dos partidos políticos. Se não dedicar tempo para ler as letras pequenas, pode pensar que se trata de uma estratégia eficaz para dar conta do consenso nacional em torno da necessidade de mudança constitucional. Mas o editor do documento quis começar a seção retomando um comunicado da Alianza Para el Progreso: o partido aceitaria uma reforma da Constituição “desde que a faça respeitando as leis e com um amplo consenso social e político, e através do Congresso”. Reiteramos: desde que seja feita com um amplo consenso social e político. É realmente assombroso: o Presidente oferece na Exposição de Motivos os argumentos contra seu próprio projeto.
A epígrafe seguinte, “Objeto e objetivo da proposta”, estabelece o procedimento para a reforma constitucional, o correspondente a um referendo, a eleição dos assembleistas, os prazos para a elaboração do texto constitucional… Os motivos para a reforma continuam, por enquanto, brilhando por sua ausência.
Decidido a sustentar esse brilho até a última página, o Presidente reservou uma cena verdadeiramente memorável para o final. “Análise de custo-benefício”. Leia estas três palavras quantas vezes for necessário até se convencer de que seus olhos não o enganam. Análise de custo-benefício. Se os rivais de Castillo na campanha eleitoral de 2021 expressaram seus temores de que o professor levaria o Peru ao comunismo, podem ficar tranquilos: o Presidente abraçou o capitalismo e o pensamento empresarial a tal extremo que avalia a conveniência de uma reforma constitucional mediante vocabulário de Goldman Sachs.
Mas nem tudo está no título: o conteúdo da epígrafe merece similar atenção. O grande benefício de renovar os fundamentos políticos do país seria – sempre segundo o documento – que os cidadãos poderiam participar do processo, elegendo seus representantes e assim levando a democracia a níveis jamais imaginados. O custo, por outro lado… Oh, o custo! Onde o redator o deixou? Que descuido… Enfim, devemos concluir que se trata, como convém ao neófito neoliberal Castillo, de uma operação própria de um falcão de Wall Street: todo lucro, zero custo.
Vamos terminar: os três últimos parágrafos se ocupam da análise do impacto da vigência da norma na legislação nacional. A essa altura o leitor já imagina o que se esconde por trás desse título tão grandiloquente. E não se equivoca: mais do mesmo. Ou seja, mais vazio. Que se propõe reformar a Constituição, que fomenta a participação cidadã e que cabe ao Presidente convocar o referendo em questão.
O Convento de San Francisco de Lima é um Patrimônio da Humanidade. Graças à idoneidade da obra projetada em 1601, que o salvou das correntes destrutivas, ele segue de pé para nosso desfrute quatro séculos depois. Os mesmos em que teria sido engolido pelo despenhadeiro penhasco se os engenheiros de Lima tivessem planejado algo malfeito como o fez Pedro Castillo.
*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima
Autor
Politólogo e Doutor em Ciência Política pela Universidade de Salamanca. Especializado na sucessão do poder e na vice-presidência na América Latina.