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Peru volta a ter um congresso bicameral

Peru retorna ao bicameralismo com temas pendentes e com a estabilidade política dependendo mais de seus políticos do que da reforma.

Há alguns dias, o Congresso peruano nos surpreendeu com a aprovação do retorno ao bicameralismo, ou seja, um poder legislativo de duas câmaras, uma estrutura legislativa com uma longa história nesse país que foi abolida na reforma de 1993 promovida pelo então presidente Fujimori. A reforma institucional em questão tem, de fato, estado na agenda legislativa de forma recorrente, embora sem êxito, desde que o unicameralismo foi aprovado. No entanto, essa não é a questão com a qual o Peru tem sido manchete internacional nos últimos tempos. Mas sim o alto nível de instabilidade política desde 2016, com quatro presidentes destituídos ou renunciando diante da ameaça de impeachment por parte do Congresso, em um cenário de relações altamente conflituosas entre os poderes. O Peru se converteu no espelho da instabilidade que pode ameaçar outros presidentes da região que governam com congressos fragmentados e cenários de alta polarização política. Em um contexto de liderança presidencial frágil, o congresso aprovou uma mudança fundamental em sua estrutura com impacto potencialmente grande no funcionamento do sistema político. Estamos interessados aqui em discutir por que foi aprovada, o que se aprovou e quais seriam seus efeitos.

O que implica a reforma

A passagem para o bicameralismo inclui a criação de uma segunda câmara legislativa, o Senado, que será composto por (pelo menos) 60 membros, e uma câmara de deputados de (pelo menos) 130, ambos eleitos por cinco anos e com possibilidade de reeleição imediata. Com essa reforma, o atual Congresso deu uma demonstração renovada de seu poder, de uma vocação expansiva que não só foi destacada pelas mencionadas destituições presidenciais, mas também pela polêmica desqualificação de autoridades do sistema judiciário para ocupar cargos públicos.

De fato, a reforma avançou – superando os requisitos constitucionais de duas leituras, com uma primeira votação em novembro e outra em 6 de março – com maiorias superiores a dois terços dos congressistas, apesar do fato de que, de acordo com a pesquisadora da Ipsos, 80% da população tem uma avaliação negativa do congresso. Da mesma forma, em 2018, os peruanos votaram a favor da proibição da reeleição parlamentar imediata e rejeitaram a proposta de bicameralismo em um referendo promovido pelo então presidente Vizcarra. Esses votos ilustram o descontentamento popular com seus representantes. 

Os argumentos a favor da reforma foram os clássicos do bicameralismo, ou seja, que duas câmaras melhoram a deliberação e permitem a divisão do trabalho. Na verdade, o modelo unicameral introduzido em 1993 havia mostrado seus limites em termos de falta de deliberação, frequentes isenções de trâmites de comissões ou de segunda votação, um número elevado de leis aprovadas por insistência legislativa e apenas uma maioria absoluta para superar um veto presidencial. Chegou inclusive ao constrangedor recorde de aprovar projetos de lei em um dia.

Será que o novo congresso se tornará tão poderoso quanto seu proponente? A divisão do trabalho pode levar a uma divisão do poder. Embora o sistema legislativo proposto não seja totalmente simétrico, o Senado não seria uma câmara irrelevante. É verdade que somente os deputados têm iniciativa legislativa e iniciam o procedimento de aprovação de leis, mas o Senado revisa, aprova, emenda e rejeita. Os deputados investigam, questionam e censuram os ministros. Os senadores designam e destituem altas autoridades, controlam os atos normativos do executivo. E como os senadores serão mais velhos do que os deputados (45 anos contra 25 anos de idade mínima), além da divisão de tarefas, os legisladores parecem ter buscado criar incentivos para comportamentos diferentes. Em resumo, talvez o atual Congresso tenha votado, sem intenção, pelo seu próprio controle. 

A divisão do Congresso torna o Executivo mais estável?

A resposta institucional de retornar ao bicameralismo sugere que sim, mas temos nossas dúvidas. Por um lado, foi eliminado o voto de confiança que cada gabinete era obrigado a solicitar no início de sua gestão, deixando-o exposto à possível rejeição por um congresso adverso. No entanto, o voto de confiança que pode ser apresentado pelo gabinete a qualquer momento para qualquer política e que levaria à dissolução do Congresso em 2019 foi mantido. O texto também mantém o poder do presidente de dissolver a Câmara dos Deputados se ela censurar ou negar confiança a dois gabinetes, embora seja interessante que o Senado permaneça em vigor no caso de uma crise política, proporcionando alguma continuidade institucional.

Por outro lado, as duas câmaras devem chegar a um acordo sobre o impeachment do presidente: os deputados acusam o presidente (e outros funcionários) de violações da constituição e de crimes cometidos no exercício de suas funções; os senadores podem suspender, destituir e inabilitar os acusados para exercício da função pública. Entretanto, a redação não estipula com quais maiorias. Da mesma forma, a vacância por permanente incapacidade moral continua em vigor e deve ser declarada pelo Congresso. As futuras regulamentações de ambas as câmaras devem desenvolver como os deputados e senadores participam desse processo.  

Nesse contexto, o bicameralismo pode ter consequências positivas para controles e equilíbrios, maior deliberação e carreiras políticas. Além disso, o executivo continuará sujeito à responsabilidade política, mas à câmara baixa, e não a todo o congresso, o que sugere maior estabilidade ou continuidade. No impeachment, as câmaras têm funções diferentes. Entretanto, ficaram pendentes temas importantes que essa reforma não resolve. 

Por um lado, a fragmentação e a política parlamentar transpartidária, um reflexo dos problemas de representação política, não foram mencionadas. Em 2020, nove partidos obtiveram representação parlamentar e, em 2021, dez. O Peru Libre, o partido vencedor em 2021 com 28% dos assentos, atualmente tem 8%. Desincentivar a troca de partidos e evitar que os partidos demissionários formem novos grupos parlamentares é uma tarefa pendente.

Por outro lado, o voto preferencial foi recentemente restabelecido, mas essa reforma deixou pendente o desenho dos círculos eleitorais para deputados (atualmente, os 130 congressistas são eleitos em 27 círculos eleitorais, incluindo o dos peruanos no exterior) e, no caso dos senadores, a regra constitucional também deve ser esclarecida, a qual prevê a eleição de um por cada circunscrição eleitoral e os demais por distrito único eleitoral nacional.

Em suma, o Peru retorna ao bicameralismo com temas pendentes e com a estabilidade política dependendo mais de seus políticos do que da reforma.

Autor

Abogada y cientista política. Profesora de la Pontificia Univ. Católica del Perú (PUCP). Máster en C. Política por la misma universidad. Integró la Comisión de Alto Nivel para la Reforma Política. Especializada en temas constitucionales y parlamentarios.

Cientista política. Investigadora principal en el German Institute of Global and Area Studies - GIGA (Hamburgo, Alemania). Fue Secretaria General de la Asociación Latinoamericana de Ciencia Política ( ALACIP). Especializada en instituciones políticas comparadas en A.L.

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