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Referendo cubano: demagogia plebiscitária e resposta cidadã

Hoje, em Cuba, está sendo realizado um referendo para atualizar o Código de Família, que data de 1975. O objetivo da votação é legalizar questões como o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou medidas de proteção para mulheres vítimas de violência doméstica. Entretanto, todo mecanismo de participação cidadã deve ser analisado por seu conteúdo jurídico, seu contexto social e seu horizonte político. Porque a manipulação autocrática dos votos plebiscitários é um assunto antigo. Desde o remoto antecedente da demagogia clássica (Aristóteles dixit) até suas modernas variações de tema, formato e ideologia, o objetivo é sempre legitimar os déspotas no país e no exterior. Ampliando sua base de apoio e dividindo os cidadãos. Ao manipular direitos, para perverter a justiça. De Lugansk a Mayabeque.

Nos últimos tempos, muitos governos conservadores (especialmente na Europa pós-comunista) têm abusado dos mecanismos da democracia direta para dar legitimidade em massa à restrição de direitos. Os coletivos de diversidade sexual têm denunciado, com razão, tal linha de ação. Em Cuba, a natureza iliberal e a tradição plebiscitária do regime atual estão de acordo com esta tendência global. Portanto, seja à direita ou à esquerda, os poderes interessados em dar voz aos cidadãos a fim de fortalecer sua legitimidade e sua agenda fazem parte do atual cenário político. De tal estrutura e precedente, o artefato de manipulação plebiscitária chamado “Consulta sobre o Código de Família”, a ser votado em Cuba neste 25 de setembro (doravante 25S), deve ser avaliado não apenas em sentido jurídico ou moral, mas também em termos sócio-políticos muito concretos. Ele e as posições em torno dele: Sim, Não, Abstenção.

Há vários elementos a serem considerados sobre o referendo. O conteúdo jurídico tem um horizonte social progressista, ainda que ambíguo: há avanços em certos direitos, enquanto outros permanecem limitados ou são suscetíveis à manipulação por parte dos que estão no poder. O contexto social e o horizonte político de 25S são claramente regressivos: há retrocessos no status real de cidadania social, civil e política, devido ao crescente descaso com a crescente pobreza e desigualdade social, exploração econômica e repressão policial por parte do Estado.

As rotas de cada setor em oposição (Sim e Não) neste 25S foram estabelecidas, ex ante, pela própria agenda oficial. A comunidade progressista a favor do “Sim” celebra os avanços da norma, mas negligencia seus aspectos problemáticos e ignora as razões ligadas ao contexto e aos objetivos do referendo. A comunidade conservadora favorável ao “Não” repudia os avanços (negando os direitos de outras pessoas), manipula questões (distorcendo até mesmo elementos controversos do projeto) e também ignora as razões ligadas ao contexto e objetivos do referendo. Ambas as posições são respeitáveis como um exercício (limitado) de agência, sob uma lógica de possibilidades. Ambas as posições, do ponto de vista de apoio ou rejeição, endossam a manipulação e o processo de plebiscitar os direitos de todos os cidadãos.

Por que o Estado optou por este caminho no referendo? Porque fragmenta e polariza uma sociedade que, nos últimos anos, amadureceu civicamente e encontrou certas exigências comuns, a partir de sua diversidade identitária, na reivindicação transversal do direito de ter direitos. O Estado escolheu, alternativamente, aliar-se e reprimir a gregos e troianos. Nos últimos anos, durante o processo de discussão da nova Constituição (2018/2019), os setores mais conservadores do Estado cortejaram as Igrejas Cristãs (católica e protestante), conscientes de que eram uma força social crescente. Eles então reprimiram a comunidade LGBTQIA+, especialmente em maio de 2019.

Esse mesmo Estado hoje inverte demagogicamente a equação. A atitude de grande parte das comunidades religiosas, a partir de sua participação nos protestos sociais de 2021/2022 e na denúncia e acompanhamento das vítimas da repressão, parecia convencer o Estado de que estes fiéis são agora mais perigosos para sua hegemonia política do que uma comunidade LGBTQIA+ com menos força mobilizadora e suscetível de proporcionar ao Estado simpatias com os setores progressistas do mundo. Entretanto, como as próprias comunidades religiosas e LGBTQIA+ são confrontadas dentro do estratagema de polarização induzida, sendo um dos coletivos sociais mais reprimidos durante décadas?

Por mais de um ano, milhares de prisioneiros e famílias têm sido reprimidos em Cuba por ousarem exigir pacificamente seus direitos nas ruas. A grande maioria da população sobrevive o melhor que pode e muitas pessoas têm saído do país.  A elite estatal manipulou sua própria legalidade – incluindo as garantias anunciadas na jovem Constituição – e as mudanças econômicas implementadas tardiamente, a fim de perpetuar seu monopólio do poder. Não é possível presumir nada além de uma politização (repressiva) adicional da lei e um reforço da judicialização (punitiva) da política. Tudo isso pesa muito no período que antecede o 25S.

O fato de o exercício dos direitos e o eventual benefício de um segmento da população ter sido contaminado pela demagogia plebiscitária é claramente da responsabilidade do Estado. Ao assumir uma campanha clara a favor do Sim, o mecanismo de mobilização de votos poderá provocar que as pessoas compareçam e votem Não no dia 25 de setembro. Se esta opção, acrescentada à abstenção, crescer além do que é oficialmente aceitável, o Estado pode até mesmo ser tentado a maquiar os números.

Em um ambiente pós 11J, onde a resposta francamente repressiva às exigências dos cidadãos superou o tradicional “controle de danos”, alguém pode argumentar que nem mesmo a fraude estará à mão neste 25S, para mostrar “apoio popular à Revolução”? É por isso que a observação no local e a análise do comportamento eleitoral podem lançar alguma luz sobre o resultado geral do dia.

Participar deste 25S em apoio ao Sim gerará vários benefícios progressistas para certos setores da população, mas de maneira favorável à máquina estatal. Optar pelo Não legitimará de forma conservadora o mesmo apelo, mesmo sofrendo censura oficial, enquanto se nega a outros direitos já garantidos. Ambas as opções reúnem muitas pessoas nobres, conscientes e politicamente ativas, cuja história de dor e esperança as leva a exercer seu direito de defender suas ideias e escolhas de vida. Isto deve ser, sem fissura ou condicionalidade, respeitado. 

Alguns críticos podem achar a abstinência uma opção desejável. De fato, muitos ativistas e opositores democráticos na ilha, conhecidos por seu apoio às demandas dos setores historicamente excluídos (incluindo a diversidade religiosa e sexual), parecem ser a favor da abstenção. A abstenção é um protesto claro – de natureza trans-ideológica – contra a manipulação política e legal do novo Código. Preservar de fato (dada sua aprovação ex ante pelos que estão no poder) os lucros dos beneficiários.

No cenário atual, esta parece ser a opção que melhor estabelece o equilíbrio entre o conteúdo jurídico, o contexto social e o horizonte político. No dia seguinte, com os resultados já publicados, será possível reconstruir, a partir dos escombros, aqueles consensos mínimos para resistir e superar a devastação que está avançando.

Autor

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Doctor en Historia y Estudios Regionales, Universidad Veracruzana (México). Máster en Ciencia Política, Universidad de la Habana. Especializado en procesos y regímenes autocráticos en América Latina y Rusia.

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