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Rumo a uma nova política de água na América Latina?

Há quase duas décadas foi aprovada uma reforma constitucional no Uruguai mediante ao “plebiscito pela água”, promovido por organizações da sociedade civil que se uniram diante das ameaças de uma onda crescente de privatização dos serviços de abastecimento de água. Esta reforma não só determinou a prestação do serviço público de saneamento e abastecimento de água para consumo humano, mas também o direito humano à água, e a participação dos usuários e da sociedade civil em todas as instâncias de planejamento, gestão e controle dos recursos hídricos. Desta maneira, as bacias hidrográficas foram estabelecidas como unidades básicas.

Na América Latina, similar ao contexto global, existe uma tendência de mudança na gestão e governança da água, o que implica uma transição de modelos centralizados e tecnocráticos para modelos descentralizados, integrados e participativos. Entretanto, embora os marcos regulatórios desempenhem um papel importante na transição para um novo modelo de governança, eles não são ingredientes suficientes.

Os recursos hídricos têm sido historicamente gerenciados seguindo uma abordagem tecnocrática, a partir de níveis centrais de governo, baseando-se no paradigma de previsão e controle. Esta abordagem, que ainda predomina em vários contextos, levou a muitas consequências negativas para os ecossistemas e as sociedades que deles dependem, dando lugar, nas últimas décadas, a enfoques alternativos.

A Bacia da Laguna del Cisne

A Laguna del Cisne é uma importante fonte de água no Uruguai e abastece cerca de 30.000 habitantes e 70.000 visitantes durante os meses de verão. Entre os anos 2008-2010, se iniciou um conflito socioambiental vinculado aos primeiros cultivos de soja transgênica e outros cultivos associados com a aplicação de pesticidas na bacia. Neste marco, coletivos da sociedade civil e usuários iniciaram ações para que as instituições do governo implementassem medidas para que a bacia fosse protegida de contaminações, para deter as fumigações e assegurar a qualidade da água.

Finalmente, em 2014, no âmbito da Política Nacional da Água, se conformou a Comissão da Bacia da Laguna del Cisne (integrada por atores do governo, usuários e sociedade civil), que se tornou um importante âmbito de coordenação e discussão, para assessorar na gestão. Com base no trabalho da comissão, o governo do departamento elaborou normativas que incluem medidas de proibição de fumigações terrestres com pulverizadores autopropulsados, a transição para modelos sustentáveis de produção, faixas de proteção dos cursos de água e o estabelecimento de um plano de monitoramento da qualidade da água.

Isto, como outros modelos alternativos de gestão, tende a reconhecer a variabilidade, dinâmica e incerteza das bacias hidrográficas; a aceitar a validade e os aportes do conhecimento local adquirido com a prática e o estreito vínculo com o ambiente, como fonte complementar ao conhecimento científico e técnico. Outra tendência destes modelos é promover a participação de diversos atores – governamentais e não governamentais – criando espaços de interação entre eles, para realizar aportes à gestão da água.

Neste contexto, o Projeto GovernAgua, liderado pelo Instituto SARAS, busca, através de um enfoque transdisciplinar, entender e promover a governança adaptativa e antecipatória da água Sul-americana. De fato, a transição de um modelo de governança centralizada para uma governança participativa ou em rede implica em vários desafios. Um deles, superar a fragmentação das funções de gestão entre as instituições de governo que se dedicam à proteção ambiental e produção agrícola em países como Argentina ou Uruguai.

Outro desafio importante tem a ver com implementar processos participativos significativos, tomando decisões de forma colaborativa entre os diferentes atores implicados, onde suas vozes sejam realmente levadas em conta. Os desafios se devem, em muitos casos, a modelos predominantes de governança centralizada ou de governança de mercado, como no caso do Chile, onde existe um mercado para alocar o recurso, o que gera fortes desigualdades no acesso à água.

O avanço de uma nova forma de administrar a água na região

A nível regional, muitos países têm optado por estabelecer em sua legislação a criação de comitês de bacia e outros âmbitos similares para apoiar a gestão dos recursos hídricos. Mas as características desses âmbitos variam de país para outro, e inclusive dentro de um mesmo país.

Na Argentina, por exemplo, cada província tem seu marco legal para a gestão dos recursos hídricos e a composição dos comitês varia entre províncias, e algumas províncias nem sequer formaram tais órgãos. No Brasil, os comitês da bacia desempenham um papel de coordenação e deliberação entre os diferentes atores, arbitram conflitos relacionados aos recursos hídricos e aprovam o Plano de Recursos Hídricos, entre outras coisas. E no Uruguai, as chamadas Comissões de Bacias e Aquíferos colaboram na formulação e execução dos planos locais de gestão, articulam atores e apoiam a gestão dos recursos, entre outras tarefas.

Em resumo, a governança participativa inclui os atores diretamente implicados com a água e as bacias hidrográficas, tornando-a mais democrática do que outros tipos de governança. Ademais, os âmbitos de articulação que envolvem vários atores permitem que diferentes tipos de conhecimento sejam reunidos para a tomada de decisões e, portanto, se ajustam mais às realidades dos territórios. A participação no processo de gestão também está associada a uma maior aceitação das medidas propostas.

A conjugação de vários destes aspectos implica que estes sistemas de governança estão melhor preparados para lidar com mudanças imprevisíveis e para adaptar-se, já que ao contar com interação entre níveis organizacionais, entre diferentes atores e com várias fontes de conhecimento, contam com uma maior diversidade de ações a serem consideradas.

Administrar a água diante a mudança climática

Estas características são especialmente relevantes num contexto de mudanças ambientais globais e de emergências climáticas que intensificam as crises hídricas que a região atravessa. Secas, inundações, perda da qualidade da água por excesso de nutrientes ou sedimentos, se desencadeiam como resultado de interações entre fatores sociais, políticos, econômicos e climáticos. Inclusive, as crises hídricas (que não se referem só à água, mas também ao uso do solo) também são conhecidas como “crises de governança”.

Para que os comitês de bacia e outros âmbitos similares possam ter um papel importante nesta governança em contextos de crise hídrica, é necessário fortalecer seu funcionamento. Isto pode implicar a institucionalização destes espaços com regras específicas sobre sua composição, competências, dinâmica de trabalho, etc., mas também a alocação de recursos necessários para que possam cumprir suas competências.

Muitas vezes as instituições governamentais têm capacidades limitadas para avançar nesta transição para modelos participativos, o que se reflete na falta de cumprimento dos chamados marcadores de qualidade dos processos participativos. Neste sentido, e por tratar-se de âmbitos consultivos ou assessores, é essencial que as instituições do governo levem em conta os aportes e propostas que surgem dos comitês. Não fazê-lo leva à deterioração e é uma das razões que leva ao seu abandono.

A América Latina deve seguir avançando na transição de uma governança centralizada para uma governança participativa da água, mas ainda há muito pela frente. Entre outras coisas, a academia deve promover o desenvolvimento de pesquisas transdisciplinares que reúnam atores não acadêmicos implicados diretamente nas bacias hidrográficas e sua gestão, para a busca de soluções nos diferentes contextos.

*Foto de Guillermo Goyenola

Autor

Profesora de la Unidad de Ciencia y Desarrollo de la Facultad de Ciencias de la Univ. de la República. Investigadora Asociada del Instituto SARAS. Doctora en Manejo de Recursos Naturales y Medioambiente por la Universidad de Manitoba (Canadá).

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