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Semelhanças e diferenças entre os processos constituintes brasileiro e chileno

Co-autor Danilo Buscatto Medeiros

Mais de 30 anos separam a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) brasileira e a Convención Constitucional chilena. Há aproximações e distanciamentos entre os dois processos, mas ambos são cercados de conflitantes expectativas e substanciais diferenças.

A convocação de uma assembleia constituinte no Brasil vem de carona no movimento pelas eleições presidenciais diretas, nesse momento de transição de um regime autoritário para um democrático. Já o processo no Chile – uma democracia consolidada – tem início nas mobilizações estudantis contra o aumento do preço da tarifa do metrô em Santiago.

Nos dois casos, entretanto, amplas mobilizações se beneficiaram de reações governamentais. Do lado brasileiro, a derrota das “Diretas” direciona parte dos partidos políticos e dos movimentos sociais a investirem na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Constituinte. Já do lado chileno, as repressões policiais aos estudantes aumentam a intensidade e o volume das insatisfações até alcançar todo o país – cunhando o termo estallido social – no 18 de outubro de 2019 (18-O), quando as pautas das manifestações se diversificam.

Outra importante distinção está nas lideranças políticas e nas relações institucionais dos atores que antecedem a instalação das constituintes. No Brasil e na esteira do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido-movimento de oposição ao regime militar, os atores políticos que participam das “Diretas” (e posteriormente da ANC) vão ideologicamente desde a centro-direita até a esquerda.

Já no caso chileno, as mobilizações não estão estritamente conectadas aos partidos, inclusive são embaladas na esteira da desconfiança com a política tradicional. Entre os chamados independientes, atores não filiados e que compõem parcela significativa da Convención, se nota um posicionamento ideológico entre a chamada nova esquerda e a izquierda radical.

Em ambos os países as elites políticas foram capazes de construir amplos pactos político-partidários em um momento de alta mobilização social somado ao contraste e enfraquecimento de governos de direita. No caso brasileiro, a Aliança Democrática aglutina forças políticas dispersas por todo o espectro ideológico em oposição à candidatura que representava a continuidade. Após a morte do Presidente recém-eleito, Tancredo Neves, seu vice empossado, José Sarney, cumpriu a promessa da chapa de dar o pontapé inicial para uma assembleia constituinte. A convocação da ANC foi o substituto funcional da ruptura não ocorrida com o regime anterior e compunha uma demanda de parte da sociedade civil organizada.

No estallido chileno, as elites políticas tradicionais se utilizam da superação da constituição herdada de Pinochet como reação e saída para diminuir as tensões sociais do país. No Acuerdo por la Paz Social y la Nueva Constitución, assinado pelas principais lideranças político-partidárias, se estabeleceu um plebiscito para consultar tanto sobre uma nova constituição como o modelo de representantes exclusivos ou mistos. Igualmente condicionaram a aprovação da nova carta magna a um plebiscito obrigatório.

Há aqui uma distinção importante. A constituinte brasileira nasce de uma emenda à constituição – cuja tramitação ouviu timidamente especialistas e representantes de classe – e adota um modelo congressual em que aqueles que escrevem a nova carta acumulam também a função de legisladores ordinários. Já no Chile o chamado a um plebiscito nacional é uma reação dos partidos políticos para dirimir os protestos sociais. A sociedade chilena então aprova a constituinte com larga maioria e define o modelo de Convenção Constitucional com representantes exclusivos.

Em outras palavras, os distintos incentivos das relações entre atores políticos e sociais resultam em diferentes resultados dos processos constituintes: uma controlada por atores político-institucionais e a outra empurrada por lideranças e organizações sociais. 

Para as conexões com o público, a ANC é conhecida pela participação intensa de movimentos sociais e também de organizações e movimentos patronais em algumas de suas sessões. O bipartidarismo forçado legou ao MDB o papel de oposição ao regime militar, cuja legitimidade e conexões sociais beneficiaram o estreitamento e pontes entre o partido-movimento e a sociedade.

Já no Chile, a maioria de seus representantes exclusivos independientes, advindos de movimentos sociais e de territórios, carregam desconfianças frente aos partidos tradicionais. Esses atores inseriram na Convención proporcionalidades sociais nas comissões como paridade de gênero, plurinacionalidade, e equidade territorial.

Já o constitution-making nos dois casos são similares e de baixo para cima, isto é, comissões temáticas produzem anteprojetos que são levados ao plenário. O Regimento Interno na ANC instalou oito comissões (mais uma poderosa comissão de sistematização), enquanto o Reglamento General chileno alcança sete comissões temáticas. No Brasil, o primeiro regimento exigia maioria absoluta de votos para as deliberações nas comissões e no plenário. No Chile é uma maioria simples para as comissões e dois terços no pleno.

Na hipótese de aprovação por maioria simples no pleno, se retorna às comissões para ajustes com a possibilidade de ser submetida a votação no pleno por mais uma única vez. Este aspecto foi diferente na assembleia brasileira, onde coube à comissão de sistematização juntar os anteprojetos das oito comissões e preparar um único para ser votado em plenário, sem oportunidades de retorno para as comissões. Sabemos, no entanto, que o processo foi mais truncado devido à revolta contra o Regimento Interno que resultou nas mudanças das regras e também na formação do chamado “Centrão”.

A constituinte chilena atualmente enfrenta desafios similares aos da etapa final da experiência brasileira. Além da dificuldade de aprovar as enxurradas de normas, o Chile também tem observado a reboque um significativo aumento do rechazo, ou seja, cresce a impopularidade e desaprovação popular frente a Convención, segundo pesquisas de opinião pública recentes.

No Brasil, apesar da alcunha de “Constituição Cidadã”, o texto final também recebeu críticas e acusações de ser progressista ou demasiado detalhista – vale lembrar que a bancada do Partido dos Trabalhadores se recusou a assinar sua versão final. Além disso, negociações não foram capazes de promover consensos em alguns tópicos cruciais. Escolhido o presidencialismo como sistema de governo, apesar de não ser a preferência original da maioria dos constituintes, definiu-se que um plebiscito futuro poderia revisar tal decisão.

Disputas similares ocorreram no caso chileno e os independientes e parte da esquerda partidária, não entusiastas do presidencialismo, tentaram reformá-lo via propostas parlamentaristas e semipresidencialistas, porém fracassaram. Perdida essa guerra, ganharam outras batalhas: aprovaram a extinção do Senado e propuseram uma nova Câmara Territorial – com seu desenho ainda em aberto.

Um dos subprodutos políticos mais importantes e subestimados para o processo constituinte brasileiro é a formação do chamado Centrão, união suprapartidária de parlamentares insatisfeitos com os rumos da ANC. O levante desse grupo de viés conservador – ainda que ideologicamente heterogêneo – não teve relação com a imposição de um texto supostamente de esquerda, mas com a dificuldade de alteração do anteprojeto que sairia da Comissão de Sistematização bem como pela insatisfação com a probabilidade do parlamentarismo e redução do mandato do então Presidente Sarney.

Como resultado do levante à centro-direita, as regras do jogo foram alteradas depois de quase um ano de trabalho, implicando a dificuldade de formação de maiorias em temas divisivos. Negociação às portas do plenário deram o tom das suas votações, o que, em parte, explica a insatisfação de diversos grupos com o resultado final. A Convención chilena não terá uma, senão três comissões de sistematização: Armonización, Normas Transitorias, y Preámbulo. A lição brasileira serve para o país, dado que este é um momento especialmente crítico e tenso do processo. A convocação ao plebiscito para a aprovação da carta magna chilena está agendada para o dia 4 de setembro. Na hipótese de vitória do rechazo no plebiscito de saída, a experiência do Chile pode se converter em um caso chave e raro na história das ratificações constitucionais na América Latina e no Mundo.

Danilo Buscatto Medeiros é pesquisador de Pós-Doutorado do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e colaborador do Centro de Estudos de Opinião Pública (CESOP) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor Convidado na Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EESP-FGV). Doutor em Ciência Política pela Universidade da Virgínia.

Autor

Professor Assistente de Ciência Política do Departamento de Sociología, Ciencia Política y Administración Pública da Univ. Católica de Temuco (Chile). Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP).

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