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Semipresidencialismo no Brasil: um filme repetitivo

O presidente da Câmara de Deputados, Arthur Lira, tem negociado uma emenda à Constituição para que o Brasil abandone o presidencialismo e adote o sistema de governo semipresidencialista. Tal medida é apoiada por políticos e juristas e serviria para agradar à maioria parlamentar, reduzindo a pressão pelo impeachment de Jair Bolsonaro. Já vimos esse filme. Embora o semipresidencialismo seja um sistema legítimo de governo e tenha sido defendido por vários estudiosos, é necessário entender o contexto brasileiro no qual vários setores tradicionais e clientelistas da política nacional vêm há muito tempo promovendo-o de uma forma específica.

O motivo: no semipresidencialismo, o presidente é eleito diretamente, mas quem governa de fato não é ele, e sim um primeiro-ministro apoiado pela maioria dos parlamentares. Do mesmo modo que no parlamentarismo puro (onde não há voto popular para presidente).

Como funciona o semipresidencialismo?

O grau de poder do presidente varia: em alguns países, como França, Rússia e nações africanas, sua influência é considerável ou decisiva. No modelo defendido pelo presidente da Câmara de Deputados para o Brasil, o presidente escolhido pelo povo teria a capacidade de intervenção política de uma rainha da Inglaterra.

Hoje a disputa pela Presidência costuma se polarizar entre uma candidatura de esquerda e uma de direita, com outros partidos compondo a coalizão com o grupo vitorioso. Essa dinâmica seria alterada se o governo não dependesse mais da disputa presidencial.

Tanto o parlamentarismo puro como o semipresidencialismo, quando há muitos partidos como no Brasil, tendem a crises de ingovernabilidade. Mais grave que isso, para a preocupação deste texto: tais governos são formados unicamente pela negociação entre os parlamentares, ficando os eleitores e seus votos à parte da decisão de quem é o primeiro-ministro, ou seja, o governante.

Desse modo, pioraria o sentimento de que votar não adianta e de que os representantes estão distantes da população. Grupos políticos que estiveram em todos os governos, no ministério e influenciando nas políticas, finalmente poderiam liderar diretamente, indicando o primeiro-ministro. Não precisariam de uma candidatura presidencial que convencesse a população. A manobra é velha. O semipresidencialismo/parlamentarismo parece, no Brasil, aqueles filmes de terror em que o monstro ou o serial killer sempre volta.

O semipresidencialismo na história brasileira

É de conhecimento comum que os militares, que hoje voltam a descumprir seu papel constitucional ameaçando reiteradamente as instituições representativas, deram um golpe em 1964, motivados pela histeria anticomunista. Entretanto, é negligenciado que também violaram a democracia três anos antes.

No período razoavelmente democrático iniciado com o fim da ditadura de Getúlio Vargas em 1945, o presidente e o vice-presidente eram eleitos diretamente pela população, mas em chapas diferentes. Assim, foi possível escolherem em 1960 para vice um candidato não alinhado àquele votado para presidir o país. O conservador Jânio Quadros venceu com o discurso de “varrer” a corrupção (o símbolo da campanha era uma vassoura), mas o vice seria João Goulart, de esquerda e defensor das reformas de base. Quadros renunciou à presidência em 1961 com oito meses de governo.

Por associarem Goulart ao comunismo, na mesma ladainha neurótica da Guerra Fria produzida nos Estados Unidos, os militares não queriam permitir sua posse. Só cederam com uma condição: que mudasse o sistema de governo. Goulart assumiria como presidente, mas não sob o sistema presidencialista.

Tancredo Neves, um político tradicional, se tornou o primeiro-ministro, enquanto Goulart não teria os mesmos poderes previstos quando ele e Quadros receberam seus votos nas urnas. Isso geralmente é tratado como uma instabilidade leve, mas foi uma evidente violação democrática: a adoção do semipresidencialismo tinha o deliberado intuito de enfraquecer o presidente e ocorreu sob ameaça militar. Chamemos de “golpinho” de 1961 para diferenciar do golpe de 1964.

Em 1963, a população decidiu em plebiscito se o Brasil manteria o sistema “parlamentarista” (era na verdade semipresidencialista, pois o presidente havia sido eleito diretamente). A resposta foi contundente: 83% dos votos válidos disseram NÃO ao parlamentarismo. Contrariados com o retorno de Goulart ao seu papel de direito, os militares iniciaram uma ditadura.

Em 1989, o Brasil elegeu diretamente um presidente pela primeira vez em 29 anos. No clima do impeachment de Fernando Collor, foi aprovada, em 1992, uma emenda à Constituição para realizar em 1993 outro plebiscito sobre o sistema de governo. Além de escolher entre presidencialismo e parlamentarismo, havia ainda a inusitada opção de retornar à monarquia, extinta em 1889.

Hoje há no Brasil uma onda reacionária, com algum apoio à anacrônica volta da monarquia. Enquanto as experiências de D. Pedro I e D. Pedro II são idealizadas, seus herdeiros ganham espaços para apresentar suas posições na “linha sucessória” como se fosse relevante. Mas em 1993 a campanha monarquista na TV não foi levada a sério. Seu slogan era “Vote no Rei” e argumentava que os países ricos eram monárquicos: Inglaterra, Japão, Suécia… Mesmo com 69% dos votos válidos rejeitando o parlamentarismo e 87% se opondo ao delírio monarquista, o tema não foi enterrado.

Quem defende o semipresidencialismo hoje?

A defesa de um semipresidencialismo/parlamentarismo ganhou força nos 13 anos de governo do Partido dos Trabalhadores, de Lula. A falta de perspectiva de vitória eleitoral da direita reforçou nela a ideia de que não deveria caber à população a escolha do chefe de governo.

As argumentações frequentemente distorciam as características dos sistemas de governo e idealizavam o parlamentarismo. Houve até o falacioso argumento de que o presidente seria fraco no semipresidencialismo somente se seu grupo político não fosse majoritário. Ora, isso obviamente ocorreria, devido à dispersão dos parlamentares por vários partidos e ao fato de a esquerda ter vencido as eleições presidenciais, mas ter menos de 20% das cadeiras parlamentares.

A solução para tirar a esquerda do poder acabou sendo mais drástica: o golpe de 2016, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff sem motivo legal de fato, e a prisão política de Lula, favorito para as eleições seguintes. Agora, com Lula novamente elegível e liderando as pesquisas, com Bolsonaro como segundo colocado, sem que apareça uma candidatura viável de “terceira via”, o tema do semipresidencialismo retorna, com um objetivo bastante particular na defesa de sua implementação no Brasil.

A democracia brasileira tem se debilitado por falta de respeito à vontade das urnas. Não é com mais afastamento da população em relação ao centro decisório das políticas, como nesse filme do semipresidencialismo, que a situação melhorará. Nem com mais judicialização, com a coroação de tataranetos do antigo imperador, ou com autoritários militares. O Brasil só retomará dias de esperança, bem-estar e prosperidade com mais democracia.

Foto de Agência Brasil

Autor

Professor da Escola de Ciência Política da Univ. Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutor em C. Política pelo IESP/UERJ. Coord. do Centro de Análise de Instit., Políticas e Reflexões da América, África e Ásia(CAIPORA / UNIRIO). Dirigente sindical.

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