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Um Pacto Migratório para as Américas desenhado pelos Estados Unidos?

A Cúpula das Américas, o fórum multilateral de mais alto nível sobre as Américas, foi celebrado recentemente em Los Angeles. A Cúpula foi marcada pela adoção de uma Declaração sobre “Migração e Proteção”, proposta pelo governo estadunidense e assinada pelos governos de 20 países. De que trata esta Declaração? Por que o governo estadunidense a propôs e por que alguns governos latino-americanos a apoiaram? Podemos dizer que se trata de um “pacto migratório” para as Américas?

A IX Cúpula das Américas foi sediada pelo governo dos Estados Unidos, que também propôs os principais temas a tratar na reunião. A mobilidade humana ocupou o primeiro lugar na agenda, provavelmente devido a preocupações da política interna dos Estados Unidos. Há atualmente uma campanha política nos EUA para as eleições de meio-termo, que ocorrerão no início de novembro, e o governo Biden quis enviar uma mensagem forte e uma imagem de liderança a seu eleitorado nacional sobre este tema tão sensível. Mas isto não é algo novo. Os Estados Unidos têm historicamente apresentado propostas de normas e políticas panamericanas como uma forma de projetar seu poder e interesses ao resto da região.

Muitas vezes, a América Latina resiste e rechaça essas propostas, já que a resistência à dominação do mais forte é uma preferência profundamente enraizada na região. Seguindo essa linha, nesta ocasião muitos mandatários não compareceram e muitos outros criticaram abertamente o governo dos EUA por não convidar Cuba, Nicarágua e Venezuela para a reunião.

A Cúpula foi polêmica mesmo antes de seu início. O governo de Biden não convidou os governos de Cuba, Nicarágua e Venezuela devido a “preocupação com a falta de democracia e respeito aos direitos humanos” nesses países, traçando assim uma linha ideológica e divisória em um dos espaços multilaterais de diálogo e cooperação mais relevantes do hemisfério.

Entretanto, ao mesmo tempo, convidou países como o Haiti, onde existem importantes problemas de legitimidade dos processos eleitorais, ou a Colômbia, onde se produzem graves violações dos direitos humanos. Estas contradições despertaram a preocupação pelo padrão duplo da administração Biden para a América Latina. A ausência de Cuba, Nicarágua e Venezuela, três dos principais países de origem da migração da região, supõe também uma importante limitação para qualquer acordo hemisférico multilateral sobre migração.

A não inclusão das vozes e perspectivas dos principais países de origem da região diminui a legitimidade de qualquer acordo em matéria migratória e, ao mesmo tempo, exacerba as enormes assimetrias que caracterizam as relações internacionais interamericanas.

De maneira similar aos Pactos Globais sobre Migração e Refúgio, a Declaração de Los Angeles sobre Migração e Proteção é um acordo não vinculativo no qual os Estados signatários adotam alguns pontos de ação sob os princípios de ‘migração segura, ordenada, humana e regular’ e ‘respeitando a soberania dos Estados’. Migração ‘segura, ordenada e regular’ são princípios que foram adotados e promovidos pelos Pactos Globais, mas esta Declaração agrega o aspecto ‘humano’, que provavelmente vem do plano da Vice-Presidente Kamala Harris de gestão ‘humana’ das fronteiras.

A Declaração de Los Angeles tem quatro pilares principais: assistência financeira às comunidades de destino, origem, trânsito e retorno, promoção de vias regulares para a migração e proteção internacional, promoção da ‘gestão humana da migração’ e de uma ‘resposta coordenada de emergência’. Inclui uma forte ênfase no intercâmbio de informação nas áreas de segurança e migração irregular.

Esta ênfase na segurança e migração irregular se origina do interesse dos EUA em adotar um acordo a nível hemisférico com o objetivo de conter os fluxos migratórios em direção ao Norte, reforçar os controles fronteiriços, compartilhar informações com objetivos de controle e segurança e, ao mesmo tempo, promover uma retórica humanitária.

Essa retórica provavelmente tem o objetivo de pôr a norma em linha com a tradição latino-americana de governança migratória liberal e progressista e reduzir a resistência e oposição latino-americana às políticas restritivas e securitizadoras dos EUA. Os pilares de assistência aos países de origem e destino foram incluídos a pedido de Colômbia e Panamá. O governo dos EUA já se comprometeu a fornecer 314 milhões de dólares em assistência humanitária e para o desenvolvimento no marco deste acordo. Isto provavelmente aumentará a cooperação entre alguns países latino-americanos e os EUA em áreas de interesse para o país financiador.

Em resumo, respondendo às perguntas do início deste artigo, a Declaração de Los Angeles é um acordo juridicamente não vinculante que define quatro linhas principais de atuação no âmbito da migração e refúgio. Os Estados Unidos o propuseram principalmente para responder às preocupações de política interna em um momento eleitoral, mas tais propostas têm raízes históricas de longo prazo.

Os interesses dos EUA estavam concentrados na contenção e segurança, e os países latino-americanos a apoiaram porque a Declaração incluía algumas de suas demandas de financiamento e apoio internacional para os países de origem e de acolhimento, e também provavelmente porque os aspectos mais securitários e restritivos, frequentemente resistidos pelos governos latino-americanos, foram diluídos sob uma retórica “humana”.

O fato de não incluir as preferências dos principais países de origem mina a legitimidade do documento final. Consequentemente, a Declaração não constitui um pacto migratório integral para as Américas. É um acordo internacional amplo e flexível que, como os Pactos Globais sobre Migração e Refugiados, consiste em compromissos políticos e linhas de ação cuja implementação dependerá, em última instância, das prioridades de cada país.

A negociação da Declaração de Los Angeles nos oferece um exemplo ilustrativo das dinâmicas mais amplas que dominam a governança migratória global e regional, incluindo poderosos países receptores que tratam de impulsionar sua agenda de contenção e as diversas estratégias adaptativas, emulativas e de resistência que utilizam os países menores e médios para que suas preferências sejam incluídas em normas e padrões regionais e globais.

Agora que este acordo foi assinado, é provável que surjam dinâmicas de poder mais complexas durante sua aplicação. Que preferências serão seguidas?

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Internationalist e pesquisadora sênior da Eurac Research (Bolzano, Itália) e pesquisadora associada do Instituto Universitário Europeu (Florença, Itália). É doutora em Ciências Sociais pela FLACSO-Argentina.

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