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Existe uma governança migratória sul-americana?

A emigração de 5,6 milhões de venezuelanos desde 2015 significa que a América do Sul está sofrendo o maior deslocamento forçado da história da região. Em 1º de março de 2021, o governo colombiano, principal país receptor de migrantes venezuelanos, emitiu um decreto executivo que fez manchetes em todo o mundo. O Decreto 216 de 2021 poderia regularizar mais de um milhão de venezuelanos deslocados à força que residem irregularmente na Colômbia.

Se bem-sucedido, seria um dos maiores processos de regularização de imigrantes do mundo. Por que o governo colombiano tomou uma decisão tão “arriscada”? O fez, sustento, porque o governo colombiano seguiu uma abordagem tipicamente sul-americana de “controle estatal + direitos humanos” na governança migratória, que se baseia na compreensão da migração como um fenômeno “inevitável”.

A maioria dos especialistas sul-americanos em governança migratória tem destacado a ausência de cooperação e coordenação regional para tratar da emigração venezuelana. Esta posição ignora que as políticas mais eficazes para a regularização dos migrantes venezuelanos que foram adotadas por alguns dos principais países receptores sul-americanos seguem, na verdade, uma lógica regional e uma abordagem da governança migratória que é distintamente sul-americana.

Chamo esta abordagem de “controle estatal + direitos humanos” porque sua lógica subjacente é a inevitabilidade da migração, dado que os Estados não podem impedir a circulação de pessoas e que não é possível controlar efetivamente todas as fronteiras. Seguindo esta lógica, a regularização dos migrantes é a solução para a irregularidade. A regularização dos migrantes pode beneficiar tanto os Estados, aumentando o controle estatal sobre sua população, quanto os migrantes, ampliando seu acesso aos direitos.

Esta lógica contrasta com a prevalecente em muitas outras partes do mundo, onde prevenir migrantes “indesejados” significa usar a detenção e a expulsão como “soluções” para a irregularidade. O decreto de regularização da Colômbia é baseado em uma abordagem distintamente sul-americana da governança migratória.

Os países sul-americanos abrigam atualmente cerca de 80% dos venezuelanos que deixaram seu país desde 2015, fugindo da hiperinflação, do desemprego, da escassez de alimentos e remédios, da criminalidade desenfreada e da perseguição política. Inicialmente, a maioria dos países sul-americanos abriu suas portas aos venezuelanos e criou mecanismos ad hoc para a regularização temporária. Mas à medida que a crise na Venezuela piorou e o número de migrantes aumentou, juntamente com a crise sanitária e econômica causada pela pandemia da COVID, muitos governos adotaram medidas restritivas com o objetivo de evitar novas ondas de imigrantes.

Os governos sul-americanos não conseguiram chegar a um acordo sobre o status legal a ser dado aos migrantes venezuelanos: refugiados ou migrantes? Também não chegaram a um acordo sobre uma abordagem comum para a regularização dos venezuelanos deslocados. Isto levou os analistas a afirmarem que as abordagens nacionais prevaleceram sobre as regionais.

Entretanto, apesar da falta de coordenação regional formal, as respostas políticas de alguns dos principais países receptores baseiam-se em uma abordagem sul-americana comum da governança migratória. Os países a que me refiro são Argentina, Brasil, Colômbia e Uruguai. Em um artigo recente, chamei-os de grupo “Atlântico + Colômbia”. Os governos desses países têm buscado ativamente mecanismos alternativos de regularização e proteção a médio e longo prazo, que se baseiam em uma abordagem regional da governança migratória.

Argentina e Uruguai estenderam unilateralmente o Acordo de Residência do Mercosul (ARM) aos venezuelanos, mesmo que a Venezuela não o tenha ratificado. Isto proporciona uma autorização de residência de dois anos, que pode ser convertida em uma autorização permanente. De acordo com a plataforma R4V, Argentina e Uruguai são os países que concederam mais autorizações de residência em relação ao total da população venezuelana residente em seus territórios.

O Brasil adotou um decreto que estende as disposições do ARM a todos os países vizinhos e reconheceu milhares de venezuelanos como refugiados, com base na definição de refugiado regional de Cartagena.

A Colômbia merece mais atenção porque tem uma experiência particular como país receptor. A chegada de 1,7 milhões de venezuelanos em apenas três anos representa um grande desafio para o país. Inicialmente, o Estado colombiano havia adotado autorizações de permanência de curto prazo. Entretanto, como o texto do Decreto 216 de 2021 admite, essas autorizações tiveram pouco sucesso e mais da metade da população venezuelana na Colômbia tem um status migratório irregular.

Isto é parte da justificativa dada pelo governo colombiano para a adoção deste programa de regularização que concede aos imigrantes venezuelanos uma permissão de residência de 10 anos, que pode eventualmente se tornar permanente. A outra parte da justificativa se baseia numa perspectiva de longo prazo de integração dos imigrantes no país.

Conforme indicado no Decreto acima mencionado, a irregularidade leva à falta de informações sobre a população residente, o que tem um impacto negativo na economia e no controle do Estado sobre seu território e população. A irregularidade também encoraja as violações dos direitos humanos que, por sua vez, impede que os migrantes “contribuam para o crescimento e desenvolvimento do Estado”. Assim, a solução para a irregularidade no contexto de deslocamento em grande escala é a regularização e não a deportação.

Esta lógica de regularização se baseia na compreensão da migração como um fenômeno inevitável. Como os funcionários do governo colombiano declararam recentemente, “a ideia de uma porta aberta ou fechada é absurda” porque “é impossível controlar cada centímetro” de uma fronteira tão longa e geograficamente complexa. De sua perspectiva, os venezuelanos continuarão a entrar em território colombiano, “com ou sem status migratório”, devido à situação extrema pela qual a Venezuela está passando.

Isto não significa que a América do Sul deva ser um exemplo global de governança migratória. Existem muitos problemas na região, tais como problemas de implementação, episódios de violência xenofóbica e discriminação, e retórica anti-imigração. Entretanto, iniciativas como o Estatuto de Proteção Temporária da Colômbia, se bem-sucedidas, podem expandir o acesso aos direitos para centenas de milhares (ou milhões) de pessoas. Além disso, ela está sendo adotada em um contexto de capacidades limitadas do Estado.

O enfoque “controle estatal + direitos humanos” da governança migratória é característica da América do Sul e se baseia no desenvolvimento de um regime migratório regional que liberaliza a residência e facilita a mobilidade. Este regime se desenvolveu nos anos 2000 e tem uma forte retórica de direitos humanos. Muitos analistas têm argumentado que, com o “giro para a direita” na América do Sul, tem havido um “giro restritivo” em direção a abordagens nacionais de governança da migração regional, mas a abordagem regional segue sendo muito evidente.

Dois estudiosos do assunto, Riggirozzi e Ryan, argumentaram recentemente que “certos elementos do regionalismo sobrevivem de forma mais ampla, […] como desenvolvimentos de longo prazo que se encaixam em uma narrativa dialética mais ampla no desenvolvimento da elaboração de políticas transnacionais”. A abordagem do grupo “Atlântico + Colômbia” ilustra o que se quer dizer quando se afirma que as abordagens regionais sobrevivem “de forma mais ampla”.

*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima

Foto de Lorenia em Foter.com

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Internationalist e pesquisadora sênior da Eurac Research (Bolzano, Itália) e pesquisadora associada do Instituto Universitário Europeu (Florença, Itália). É doutora em Ciências Sociais pela FLACSO-Argentina.

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