Nunca é tarde para que nós, intelectuais críticos latino-americanos, reconheçamos o autoritarismo do governo venezuelano. Já há razões suficientes para nós, acadêmicos “progressistas” latino-americanos, assumirmos publicamente o “fechamento” do regime, e ter este dado em conta ao analisar as possíveis saídas para o “empate catastrófico” estabelecido na Venezuela. Manter o silêncio, ou preservar um apoio formal (por vezes acrítico) ao regime de Nicolás Maduro não colabora em nada para a resolução do impasse.
As críticas do processo venezuelano
Compreende-se que a questão seja difícil de ser enfrentada. Muito de belo e empolgante se deu na Venezuela nos primeiros anos da “Revolução Bolivariana” de Hugo Chávez. Uma nova Constituição ampliou direitos sociais e abriu espaço para mecanismos de democracia direta e participação popular. Investimentos sociais e campanhas de mobilização (as conhecidas “Missões”) reduziram consideravelmente a pobreza, erradicaram o analfabetismo e ampliaram o acesso à saúde.
Milhares de espaços de democracia participativa foram construídos: os Conselhos Comunais, que em seus primeiros anos contaram com a atuação da maioria da população, incluindo oposicionistas. No campo das relações internacionais, buscou-se construir uma alternativa à dominação estadunidense na região do Caribe, a Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba).
Adicionalmente, há o grande temor de, ao se criticar o chavismo, resvalar em argumentos que devem ser evitadas a todo custo (ou ser confundido com aqueles que os utilizam desde sempre). Mencionaria ao menos dois maus argumentos, que se complementam. O primeiro é a acusação de “populismo”, esgrimida sempre contra qualquer líder que busque uma relação direta com as massas contornando mecanismos de representação liberais.
Populismo é um conceito vazio, de combate, que se utiliza geralmente para deslegitimar o adversário. Mal disfarça o medo de povo daquele que acusa alguém de populismo, a demofobia de quem espera que a política sempre seja canalizada pelas instituições da democracia liberal. Aqui chego ao segundo mau argumento contra o chavismo: a visão limitada de democracia, que para muitos se resume a regras e procedimentos para organizar a disputa política entre grupos da elite. Participação popular, cheiro de povo, mobilização, política nas ruas. Eis o terror dessa gente.
O fim da democracia
Entende-se então por que temos tanto temor a criticar o chavismo. A maioria de seus críticos se constitui há mais de duas décadas de elitistas e autoritários, e lança contra ele argumentos a partir destas perspectivas. Com isso, relevamos ou criticamos em voz baixa por longo tempo problemas graves como o aprofundamento da dependência do petróleo (o “rentismo” do Estado venezuelano), ou a crescente militarização dos quadros governamentais.
De todo modo, se realizavam eleições confiáveis verificadas por organismos internacionais, se preservavam espaços de oposição (quase todos os grandes diários e canais de televisão venezuelanos àquela época), e o chavismo efetivamente se legitimava pelo voto majoritário.
Até 2015, quando se iniciou com mais evidência uma deriva autoritária. Na sequência do desaparecimento do líder Chávez em 2013 e do recrudescimento da crise econômica derivada da queda do preço do barril de petróleo e de graves problemas de gestão do Estado, as oposições conquistaram maioria qualificada nas eleições parlamentares (dois terços da Assembleia). Com isto, poderiam reformar a Constituição e bloquear o governo, apontando para o começo do fim do processo bolivariano.
A opção do governo então foi de reagir e aplicar sucessivos “golpes” por meio das instituições para sobreviver, manobrar por meio das brechas institucionais que tinha e dos apoios no aparato estatal que ainda possuía no Executivo, no Judiciário e nas Forças Armadas. Foram sendo adotadas sucessivas interpretações distorcidas da Constituição, de forma a manter o chavismo no poder.
Entre outras, anulou-se a eleição de deputados oposicionistas de modo a evitar que as oposições mantivessem a maioria qualificada no Legislativo; realizaram-se todos os subterfúgios para atrasar e por fim evitar a convocação de um referendo revogatório, para o qual havia suficientes assinaturas colhidas; e convocou-se uma “Assembleia Constituinte” (que ao final não chegou a lugar algum) apenas para sobrepassar o Legislativo de maioria oposicionista.
Desse modo, a democracia venezuelana se degenerou, em qualquer sentido em que se utilize o conceito. Mesmo sendo defensor da tese de que democracia pode assumir muitas formas, de que ela é muito mais do que instituições (e do que certas instituições com as quais ela tem sido confundida), não posso conceder que democracia signifique “governo da minoria”.
E é isto que o chavismo é hoje: um regime que se mantém no poder representando a minoria do povo venezuelano, através de eleições sem verificação independente que não mais o legitimam, eleições das quais a maioria não aceita participar. Se na democracia uma nova maioria se constitui, a nova minoria deve conceder a derrota. Desde 2015, Maduro não dá mostras de que considere esta possibilidade.
A questão é que de nenhum modo as oposições conseguem constituir-se numa alternativa confiável, depois de diversas tentativas de golpe e episódios de não reconhecimento das regras do jogo também de sua parte. Não ajuda parte da oposição estar associada ao trumpismo e ao bolsonarismo, defender a invasão militar de seu próprio país, e ser liderada por um “presidente” autoproclamado. Não se vislumbra por outra parte qualquer saída a partir de alguma oposição de esquerda ou efetivamente popular.
O diálogo como chave para superar a crise sem fim
Num baile macabro entre um chavismo que já demonstrou que fará de tudo para se manter no poder (e que mantém o apoio militar) e diversas oposições que se debatem entre golpismo, abstencionismo e eventualmente o diálogo, a Venezuela vive um “empate catastrófico”. Nesta situação em que forças diametralmente opostas se bloqueiam, avançam uma crise humanitária regada a fome, fugas pelas fronteiras da Colômbia e do Brasil e travessias em barcos precários para Trinidad e Tobago.
Se os empates catastróficos se resolvem relativamente rápido, o venezuelano parece estar se convertendo numa crise sem fim. Configura-se difícil encontrar uma saída, dadas a estendida crise econômica, a crise sanitária, a profunda polarização, as sabotagens, e o papel sedicioso de atores externos desestabilizadores como o trumpismo, a Organização dos Estados Americanos e os governos de Iván Duque e de Jair Bolsonaro.
Se há alguma solução possível, será de longo prazo: diálogos, diálogos e mais diálogos, mediados por atores internacionais minimamente equilibrados. Espera-se que, em algum ponto desta história, se retome todo aquele potencial de participação popular bloqueado, se expresse toda aquela aprendizagem participativa acumulada, se reencontre em algum lugar deste belo país aquela chama de esperança revolucionária dormente.
Foto de MARQUINAM en Foter.com
Autor
Professor de Ciência Política da Univ. Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Vice-diretor de Wirapuru, Revista Latinoamericana de Estudo das Idéias. Pós-Doutorado no Instituto de Estudos Avançados da Univ. de Santiago de Chile.