O projeto de constituição apresentado pelos membros da Convenção Constituinte do Chile contém o desenho de um regime de controle político afetivo. Embora no momento seja apenas uma coleção de artigos sem a devida estrutura legislativa, com muitas redundâncias e contradições, vale a pena ler, pois representa o culminar da doutrina da esquerda “desperta” ou “woke“. Embora o constituinte tenha boas intenções e queira corrigir as injustiças anteriores e as que virão, o texto revela o desejo de suprimir as bases da democracia liberal na qual os seres humanos são iguais perante a lei, e de substituir a igualdade dos cidadãos por uma fragmentação de identidades e orientações “afetivas”.
Este regime político afetivo tem a subjetividade como paradigma. Os direitos, segundo muitos dos artigos propostos pelos constituintes chilenos, não são de todos os cidadãos (mesmo que assim afirmem), mas de todas aquelas pessoas que se definam ou sejam definidas pelo Estado de alguma forma.
Dissidências sexo-genéricas
O caso mais chamativo é o que tem a ver com a identidade de gênero. No capítulo sobre a democracia paritária afirma-se que “O Estado reconhece e promove uma sociedade na qual mulheres, homens, diversidades e dissidências sexo-genéricas participem em condições de igualdade substantiva, reconhecendo que sua representação efetiva no conjunto do processo democrático é um princípio e condição mínima para o exercício pleno e substantivo da democracia e da cidadania. (1.- Artigo 2). Entende-se a ideia de diversidades sexo-genéricas, ou seja, as várias formas de identificação, para além da dualidade de homem, mulher, ou heterossexual e homossexual. Mas é menos óbvio o que se entende por “dissidências sexo-genéricas”. Dissidência com respeito a quê ou contra o quê?
Quando o texto se refere à “igualdade substantiva”, um termo que se repete no projeto, estabelece que “A Constituição assegura a igualdade substantiva de gênero, obrigando-se a garantir o mesmo tratamento e condições para as mulheres, meninas e diversidades e dissidências sexo-genéricas perante todos os órgãos estatais e espaços de organização da sociedade civil” (105. Artigo 6).
Neste caso, parece que as dissidência sexo-genéricas se definem em oposição ao masculino. O texto volta às “dissidências sexo-genéricas” na seção sobre o direito a uma vida livre de violência baseada no gênero, enfatizando que se trata da violência contra mulheres, meninas e os chamados dissidentes sexuais e de gênero. Aqui se reafirma a suposição implícita de que a “dissidência” é com respeito ao masculino, que seria o sujeito perpetuador da violência de gênero, como é de fato na maioria dos casos.
Uma primeira conclusão é que no projeto da possível futura constituição foi incluída a muito vaga categoria “dissidência sexo-genérica” a fim de acomodar todas as possibilidades de comportamentos sexuais e de identificação de gênero para além daquelas conhecidas como masculino, feminino, homossexual, heterossexual, bissexual, transgênero, pansexual, não-sexual, etc. A própria ideia de dissidência também implica em oposição a outras preferências sexuais ou identificação de gênero, especialmente masculino. Um dissidente seria qualquer pessoa que, com base em seus gostos, afetos ou paixões, queira ser ou fazer o que tenha vontade, sem sofrer nenhuma discriminação, segundo o constituinte chileno.
A esta categoria imprecisa de dissidentes sexo-genéricos deve-se agregar outra em que as mulheres perdem a exclusividade biológica de serem as únicas que podem ter outro em seu corpo outro ser humano e dar à luz. No capítulo sobre os direitos sexuais e reprodutivos está escrito: “O Estado garante o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos sem discriminação, com foco em gênero, inclusão e pertinência cultural, assim como o acesso à informação, educação, saúde e aos serviços e prestações requeridos para isso, assegurando a todas as mulheres e pessoas com capacidade de gestação, as condições para uma gravidez, uma interrupção voluntária da gravidez, parto e maternidade voluntários e protegidos…”. (253.- Artigo 16). (253.- Artigo 16). Quem são, além das mulheres, pessoas com capacidade gestacional? A gestação torna-se um processo assexuado, esvaziado de sua feminilidade.
Não cidadãos, mas sentimentos
O texto constitucional rompe com a distinção entre a ação pública e o espaço individual de sentimentos. Recordemos que o expediente da “enfermidade mental” (isto é, estados afetivos) foi utilizado para suprimir e encarcerar dissidentes nos totalitarismos fascistas e comunistas.
Quando o projeto prescreve o direito à identidade, diz que “Toda pessoa tem direito ao livre desenvolvimento e pleno reconhecimento de sua identidade, em todas as suas dimensões e manifestações, incluindo características sexuais, identidades e expressões de gênero, nome e orientações sexo-afetivas” (249.- Artigo 12). O que diferencia as orientações sexo-afetivas das outras? A única coisa que parece diferente é a ênfase que se coloca no afetivo, ou seja, no sentimento como uma variável de identificação.
Em uma formulação sobre o direito à integridade pessoal que tem um objetivo muito louvável, como é a prevenção dos maus tratos e da tortura, o texto propõe que “Toda pessoa tem direito à integridade física, psicossocial, sexual e afetiva…” (259.- Artigo 24). Como se pode regular a integridade psicossocial ou afetiva? Qual é o papel de um Estado na normalização da subjetividade humana? A resposta é, em princípio, nenhuma. Entretanto, no regime de controle político afetivo, o Estado tem a obrigação de proteger e moldar os sentimentos.
Quando se fala do direito à igualdade e à não discriminação, o artigo proposto tem um caráter invasivo da esfera privada do afeto: “No Chile não há pessoa ou grupo privilegiado. Todas as formas de escravidão são proibidas. O direito à proteção contra todas as formas de discriminação é garantido, especialmente quando se baseia em um ou mais motivos como nacionalidade ou apatridia (sic), idade, sexo, orientação sexual ou afetiva […] ou qualquer outra condição social” (291.- Artigo 23). A orientação afetiva não é fácil de definir, pois os parâmetros sentimentais tem uma grande carga subjetiva, são variáveis e às vezes lábeis. E no caso de “qualquer outra condição social” deixa a porta aberta a interpretações caprichosas por parte dos burocratas do Estado.
Adjetivar a igualdade
Os constituintes chilenos colocam muita ênfase em adjetivas a igualdade como “substantiva” ou o exercício “substantivo” da democracia. Contudo, a igualdade não deveria ser adjetivada, pois inclui todos os seres humanos sem distinção. Somos iguais, ponto final. Como proclama a Declaração Universal dos Direitos Humanos no seu primeiro artigo: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e, dotados como estão de razão e consciência, devem comportar-se fraternalmente uns com os outros”.
No entanto, no projeto constitucional, a “substância” da igualdade não reside na sua concepção universal do humano, mas na desagregação da pessoa de acordo com definições puramente subjetivas. E é precisamente na regulação do subjetivo que o texto outorga um grande poder ao Estado para implementar uma política que decida quais são as emoções aceitáveis e quais que não o são.
Este projeto é sintomático de uma tendência mundial em que se impõe um discurso que fragmenta a própria concepção do ser humano. Este discurso penetra todas as instituições e dissolve a pessoa em micro-identidades que dependem dos humores dos poderosos que, vigilantes, perseguirão e reeducarão aqueles que não se enquadrem nos moldes afetivos prescritos pela sua doutrina “verdadeira”.
*Tradução do espanhol por Giulia Gaspar.
Autor
Professor do Departamento de Comunicação da Universidade de Ottawa. Consultor em comunicação em saúde, gestão de crises e responsabilidade social corporativa. Doutor pela Universidade de Montreal.