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As crianças venezuelanas com doenças graves morrem por falta de atenção médica

A Venezuela passa rapidamente do ridículo ao grotesco, enquanto a profunda crise que milhões de venezuelanos vivem piora. Um dia, em um desfile militar para comemorar a independência, um boneco inflável chamado “Super Bigode” substituiu o Presidente Nicolás Maduro, que se ausenta do evento público mais importante do calendário patriótico. Outro dia se descobriu o horrível crime de um dirigente chavista que, depois de desaparecer por dois anos, aparece desmembrado por ordens de sua mulher para evitar que a acusassem de corrupção. Mas enquanto se difundem estas notícias grotescas, que deixam boa parte da população indiferente, a decadência do sistema público de saúde atinge aos venezuelanos mais vulneráveis. 

O desastre do sistema sanitário venezuelano ficou em evidência na compilação da plataforma HumVenezuela e pela Pesquisa Nacional de Hospitais, iniciativas da sociedade civil que procuram preencher o vazio informativo deixado pelo regime de Maduro.

O Ministério da Saúde não publica o boletim epidemiológico nacional desde maio de 2017, quando foi publicado o relatório da última semana de 2016. Naquela época, o boletim entrou na mídia, revelando que a taxa de mortalidade infantil havia disparado: 11466 crianças faleceram em 2016, 30% a mais do que em 2015. Isto custou à então ministra da saúde, Antonieta Caporale, seu trabalho. Desde então, não há dados epidemiológicos oficiais.

O drama no hospital de crianças

Em dois relatórios preparados pela organização não governamental Prepara Família se documenta a situação no principal hospital pediátrico do país, o J.M. de los Ríos de Caracas. Como mostra da tragédia, um dos relatórios menciona o impacto que teve a suspensão do programa de transplante de órgãos a partir de junho de 2017, o que, segundo estimativas da ONG, afetou cerca de 1500 pessoas, incluindo 150 crianças e adolescentes que ainda estão esperando por um órgão para salvar suas vidas. O próprio Maduro anunciou em novembro de 2021 que o programa nacional de transplantes seria reativado, mas isto não aconteceu.

O caso mais ilustrativo desta crise de transplantes é o da Unidade de Nefrologia do Hospital J.M. de los Ríos. Desde 2017, 71 crianças e adolescentes faleceram devido à falta de antibióticos e a problemas com os equipamentos de diálise. A Associação Nacional de Nefrologia estima que, desde a suspensão do programa de transplante, mais de 70% das unidades de diálise não funcionam adequadamente devido a defeitos dos equipamentos e à falta de água potável corrente, entre outros problemas.

A unidade de hemodiálise no hospital pediátrico de referência nacional é a única no país que pode oferecer o serviço a crianças que pesam menos de 10 kg. Apenas metade das máquinas estão funcionando, de acordo com o relatório. O hospital não dispõe de scanner de tomografia computadorizada ou equipamento de ressonância magnética. O craniótomo, um instrumento para realizar operações cerebrais, não funciona por falta de manutenção. O centro pediátrico tem apenas uma máquina de raios X portátil, que na maioria das vezes não serve. O laboratório não possui reagentes, portanto os pacientes e suas famílias devem recorrer a laboratórios privados. E a unidade do laboratório de nefrologia está fechada há cinco anos.

Nem mesmo diante da morte, este hospital conta com serviços adequados. As más condições da unidade de anatomia patológica não permitem o cuidado adequado dos cadáveres, particularmente quando várias mortes ocorrem em um curto período. As famílias não recebem nenhum apoio da administração hospitalar ou do governo e dependem da ajuda de organizações da sociedade civil para cobrir despesas funerárias.   

A pandemia de Covid-19 piorou a situação. As unidades pediátricas do país, incluindo o Hospital J.M. de los Ríos, deram prioridade aos menores com sintomas, o que teve um impacto negativo nos pacientes que sofrem de enfermidades crônicas, doenças nefrológicas, hematológicas e câncer.

O relatório também aponta que 95% das pessoas que acompanham crianças e adolescentes hospitalizados são mulheres, o que demonstra a enorme desigualdade de gênero. As tarefas de cuidado são realizadas por mães e demais mulheres familiares ou próximas dos pacientes que não recebem nenhum tipo de apoio por parte dos serviços de saúde. Portanto, o relatório considera que é importante que este trabalho seja remunerado a fim de apoiar as mulheres e famílias dos setores com procedência dos setores mais pobres da sociedade.

Direitos fundamentais vulnerados

O contexto geral da saúde na Venezuela é de contínua deterioração. Em plena pandemia, os dados que chegam de organizações não governamentais revelam problemas crônicos e agravantes. De acordo com o relatório mais recente da Pesquisa Nacional de Hospitais de junho de 2022, os índices de carência de suprimentos básicos é de 47% nas salas de emergência dos hospitais públicos e 72% nas salas de cirurgia.

Por sua vez, o relatório HumVenezuela, publicado em junho de 2021, afirma que com a pandemia, o número de venezuelanos que perderam serviços de saúde, tanto no sistema público quanto no privado, subiu para 18,8 milhões. Também aumentou para mais de nove em cada dez pessoas que carecem de proteção financeira e a para quase seis em cada dez que não contavam com recursos econômicos para cobrir despesas de saúde. Os hospitais públicos relataram 82% de inoperabilidade para tratar outras doenças além do Covid-19, uma situação agravada pela retirada de 58% a 70% do pessoal médico e 62% a 88% do pessoal de enfermagem. O pessoal  especializado de saúde emigra como tantos outros milhões de venezuelanos.

Prepara Família e outras organizações da sociedade civil denunciaram esta situação repetidas vezes perante instâncias internacionais, porque a Procuradoria Geral da Venezuela e a Defensoria do Povo, os órgãos que deveriam assegurar a defesa dos direitos dos venezuelanos, fizeram ouvidos de mercador às petições dos afetados e daqueles que os representam.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu várias medidas de precaução para proteger os pacientes do hospital pediátrico J.M. de los Río. E embora a propaganda do regime de Maduro finja que “a Venezuela se arranjou”, as crianças que morrem por falta de assistência médica desmentem tristemente um slogan que soa como um insulto à sua memória e à dor de suas famílias. 

*Tradução do espanhol por Giulia Gaspar. 

Autor

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Professor do Departamento de Comunicação da Universidade de Ottawa. Consultor em comunicação em saúde, gestão de crises e responsabilidade social corporativa. Doutor pela Universidade de Montreal.

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