Há assuntos recorrentes, questões que parecem obsoletas e, no entanto, estão imbuídas de uma atualidade avassaladora. As modas intelectuais as enterram e as agendas midiáticas as ocultam diante da aparente falta de interesse do grande público. Imersa no turbilhão identitário, absorvida pelo predomínio da singularidade, alienada pela sociedade de consumo, o povo está distraído. Na maioria das ocasiões, concentram sua atenção em assuntos diferentes, tanto em suas andanças cotidianas quanto em momentos pontuais em que a política o chama. De todo caso, o Estado parece ser algo estranho.
Ademais, nas últimas décadas, foi submetido primeiro ao manuseio e depois ao vitupério na forma de mantras eficazes para criar estratégias de descrédito. Hoje, a discussão na praça pública está ausente. Não só diante de qualquer convocatória eleitoral com a consequente banalização das ofertas proclamadas, mas também na hora de buscar soluções para os problemas que as sociedades enfrentam. No entanto, sua reconsideração me parece prioritária. Independentemente de qualquer sofisma estatista cego, é importante levar em conta suas funções na perspectiva da evidência do último século e meio, sem ignorar as enormes transformações que ocorreram, especialmente no campo tecnológico.
A situação atual na América Latina oferece uma ampla gama de cenários dramáticos nos quais o esquecimento de velhos temas leva a formar uma diligência imponderável. A coincidência no tempo de três processos eleitorais em países que, por seu tamanho e localização geográfica, poderiam ser considerados amostras representativas da região, oferece um rico material para reflexão. Por outro lado, não se trata de assuntos isolados nem exclusivos da elite política, pois estão ligados a uma multitude de experiências de caráter similar que afetam diariamente diferentes grupos da sociedade.
O assassinato do candidato presidencial, Fernando Villavicencio, é o epítome do fracasso de um estado na hora de proteger um candidato em meio a um processo fundamental para a política como a disputa eleitoral. Villavicencio é mais uma, embora emblemática, das centenas de vítimas mensais da violência no Equador, em uma notável degeneração da convivência que o país experimenta progressivamente na última década. Para pensadores como Thomas Hobbes ou Max Weber, uma ideia de progresso político está ligada ao monopólio do uso da violência legítima nas mãos do Estado, algo cada vez mais estranho a um grande número de países da região, cuja enumeração é desnecessária. O assassinato de Villavicencio deve ser entendido como o cruzamento de uma linha vermelha que alerta para a entrada em um cenário extremamente perigoso que resulta em uma situação de fracasso do Estado, como adverte Simón Pachano.
O triunfo evidente de Javier Milei nas eleições primárias argentinas é um duro golpe de uma oferta política, sem entrar nas conotações individuais vinculadas à sua trajetória pessoal ou à ausência de um projeto minimamente articulado com uma máquina política que, por sua vez, questiona profundamente o Estado como instituição pública. Em primeiro lugar, sua postura determinada a dispensar a moeda nacional o distancia das premissas clássicas de que o poder de cunhar moeda é uma das principais características da soberania. Mas, acima de tudo, é sua firme crença em sua utopia libertária que desconstrói a estrutura de coexistência de longa data. Suas manifestações na noite do êxito eleitoral são explícitas de condenação do pacto social no qual se baseia o estado social de direito. Disse: “Estamos diante do fim do modelo de castas, baseado nessa atrocidade que diz que onde há uma necessidade há um direito, mas se esquece de que alguém tem de pagar por esse direito”.
Ao longo das décadas, a Guatemala construiu o que Edgar Jiménez chama de “estado corporativo mafioso”. Usando o poder das elites econômicas tradicionais, realizou uma cooptação hábil de um setor neural da justiça, que começou quando a Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala (CICIG), um projeto endossado pelas Nações Unidas para modernizar a justiça após os acordos de paz, foi expulsa do país. Os efeitos do chamado “pacto de corruptos” tiveram consequências muito graves na proscrição de candidaturas e na perseguição de membros do judiciário que não se submeteram às suas decisões. A Guatemala é o país latino-americano com o maior número de funcionários do judiciário exilados, além de jornalistas e ativistas de direitos humanos. Por sua vez, o atual processo eleitoral está a ponto de colapsar como resultado da perseguição ao Movimiento Semilla de Bernardo Arevalo.
O Estado, como instituição política por excelência, é fruto de um longo processo histórico que reúne mudanças de diferentes naturezas pelas quais a humanidade passou. Trata-se de uma estrutura fundamental para articular a convivência humana, ajustando o equilíbrio de poder e garantindo-o com um grau mínimo de eficácia e eficiência. Seu caráter complexo e tempestuoso requer que seja objeto permanente de revisão, mas isso não ocorrerá se o debate público não estiver continuamente acessível. Se Karl Popper se referiu à “sociedade aberta e seus inimigos”, abrindo uma discussão de longa data que chegou até os dias de hoje, também é hora de colocar na mesa a questão do estado social de direito e seus inimigos.
Autor
Diretor do CIEPS – Centro Internacional de Estudos Políticos e Sociais, AIP-Panamá. Professor Emérito da Universidade de Salamanca e UPB (Medellín). Últimos livros (2020): “O gabinete do político” (Tecnos Madrid) e em coedição “Dilemas da representação democrática” (Tirant lo Blanch, Colômbia).