Recalculando, a palavra desesperada com a qual o navegador nos ataca em meio ao estresse do trânsito. É isso que as PASO (primárias abertas para a eleição do presidente) deixaram para nós, analistas, cidadãos e, sobretudo, líderes da política na Argentina.
Depois do choque vem a integração da nova situação e a incorporação de novas ideias em nosso horizonte de opções. Há medo: do novo, da incerteza, da ingovernabilidade, do antidemocrático. Ficamos com três incógnitas: Até onde vai o fenômeno Milei? Nosso sistema de partidos e alianças se reconfigurou? Que oportunidades não podemos ignorar?
Milei demonstrou ser um representante cabal do borgiano “Não nos une amor, senão o espanto”. Conseguiu reunir o descontentamento com a política tradicional, felizmente através da expressão democrática por excelência, o voto, além de seu discurso furioso e algumas promessas impraticáveis. Retórica ou proposta que convenceu a muitos.
A primeira grande pergunta é se tem a possibilidade de ser eleito presidente e, se eleito, se seu governo seria viável. Todavia, o fenômeno Milei se trata só de uma opção. Faltam bastantes cálculos e realinhamento de forças e discursos para ver se será o vencedor. A grande dúvida é se o seu partido, La Libertad Avanza, é uma coleção de antis, de demolidores do status quo, ou se conforma uma nova substância que pode catalisar-se em um governo viável.
Se Milei não chegar à presidência é, em parte, porque não tem a confiança necessária, porque não pôde estabelecer maiorias parlamentares, porque lhe falta gestão e apoios. Além do descontentamento, é necessário certa convicção de que pode desempenhar um governo democrático, com legitimidade simbólica e apoio suficiente para poder articular políticas públicas. A belicosidade discursiva pode ser suficiente para ganhar as eleições, mas não é suficiente para governar. Muitos se perguntam como Milei administraria o conflito, como negociaria com grupos de pressão e, sobretudo – uma grande medida argentina –, se conseguiria chegar ao fim do mandato (em tempos políticos longos) de quatro anos.
Partidos, alianças e candidatos estão recalculando seus discursos e estratégias com base nos resultados das PASO e levando em conta o possível segundo turno das eleições presidenciais em dezembro. Se nenhum candidato obtiver 45% dos votos afirmativos no primeiro turno, nem mais de 40% com uma diferença de dez pontos percentuais em relação ao segundo candidato mais votado, será realizado um segundo turno entre os dois mais votados. É possível que o voto anti casta política, o voto de protesto e o voto anarcocapitalista não sejam tão fortes na hora da eleição para presidente, em que a ciência política prevê que o eleitorado correrá para o centro. Afinal, podemos expressar nossa fúria nas PASO, mas para eleger o presidente, o eleitorado é moderado. Como diz a famosa frase em inglês, “cuidado com o que deseja, isso pode se tornar realidade”.
A segunda questão é a nova distribuição de votos e dos candidatos.
Por gerações, a Argentina vem esgotando seu capital social, político e econômico para criar riqueza, segurança, educação e saúde de qualidade. Um país condenado a uma dualidade amigo-inimigo que até agora não conseguiu se recuperar. A dinâmica da competição política argentina é caracterizada pelo que é conhecido como “a divisão”: os eleitores ficam presos em seu pertencimento ao campo peronista ou antiperonista.
Há uma porcentagem ancorada em cada lado do aquário, o famoso “núcleo duro”. As grandes e, às vezes, enormes diferenças entre o peronismo e o antiperonismo não provocaram uma fuga de eleitores de um lado para o outro.
O fenômeno Milei mostra que, mais do que uma lealdade profunda ao seu próprio grupo, a divisão foi dominada pelo não pertencimento ao outro. Em outras palavras, temos sido prisioneiros da divisão como constituinte de nossa identidade política pela oposição. Até agora, os que estavam decepcionados com a política viam como opção apoiar relutantemente os candidatos de seu lado ou ficar em casa na hora de votar. Essas PASO mostraram, de fato, um aumento na abstenção, mas também uma nova alternativa. A grande mudança é que Milei propôs uma “saída elegante” para os desencantados.
A dignidade da pobreza, a reivindicação da marginalidade em uma sociedade empobrecida e vulnerável, é o nicho de discurso já ocupado pelo peronismo. Por outro lado, o antiperonismo segue oferecendo uma mudança que não demonstrou alcançar nem gradualmente nem em conjunto. Milei se apresentou como uma proposta de redenção e ruptura, e os desencantados saíram de seus lugares tradicionais de peronismo e antiperonismo, onde estavam estagnados. É um chamado para cerrar fileiras de frustrados.
E a terceira pergunta é como reagir à mensagem das urnas.
É provável, então, que seja Patricia Bullrich ou Sergio Massa a pendurar a faixa presidencial. No entanto, não nos esqueçamos que a política também acontece no intervalo entre as campanhas e, se dessa vez a voz dos desencantados não for articulada, pode ser que mais tarde ela trabalhe para conseguir uma proposta votável, com tudo o que lhe falta: alianças nas câmaras, propostas claramente democráticas que não provoquem medo, construção política, candidatos com mais experiência e eleitores mais fiéis. Ou simplesmente que acabe catalisando o cansaço, porque os demais atores relevantes não ocupam o espaço de articuladores das demandas de renovação política.A árvore da estratégia não nos impede de ver a floresta de uma nova realidade. As urnas falam e têm mostrado a oportunidade de uma grande mudança. Em uma sociedade com 40% de pobres, há necessidades urgentes, com medidas que precisam ser conciliadas, pois podem levar gerações para causar impacto. O próximo presidente, o congresso e a oposição terão mais oportunidades de gerar um amplo consenso sobre pontos fundamentais. A nova dinâmica que foi batizada de “três terços” pode liberar o feitiço do espelho da divisão. O apelo por mudanças tangíveis e até disruptivas pode ser aproveitado para animar as instituições, reformar o Estado, ajudar a dinamizar o setor empresarial, diversificar as fontes de riqueza de nosso país para desarticular o clientelismo. Se existir uma oportunidade de preencher a divisão, que seja para mudar o diálogo político, introduzir temas de médio prazo na agenda, organizar alianças mistas entre diferentes atores da sociedade civil e da política para que a realidade não nos surpreenda recalculando.
Autor
Bacharel em Ciência Política pela Univ. de Buenos Aires (UBA), com especialização em Relações Internacionais. Diploma da Escola de Governo do INCAP. Analista do Instituto de Segurança Internacional e Assuntos Estratégicos (ISIAE/CARI).