Desde 2018, se presencia na América Latina o que o pesquisador Daniel Zovatto chama de “super-ciclo” eleitoral, em que uma alta quantidade de eleições são realizadas e previstas, sejam elas locais ou gerais. Esse calendário intenso ocorre em um contexto latino-americano conturbado quanto à estabilidade e integridade democráticas. Protestos contra governos de tendências autocráticas e insatisfação com a democracia e as instituições se refletem nos dados do Latinobarômetro desde então. Quadro este que não dá sinais de recuperação. É nesse cenário de evidente questionamento democrático que o tema da observação eleitoral mostra a sua importância.
É papel das missões de observação realizar uma coleta minuciosa de informações sobre as eleições tanto no período pré-eleitoral (na pré-campanha ou nela propriamente dita), quanto durante e após o momento do pleito. Com essas informações, é possível aumentar a transparência do processo eleitoral, elaborar material de consulta especializada com sugestões de melhorias, o que, por sua vez, aumenta a legitimidade dos resultados. Com isso, a sociedade é envolvida em temas complexos ou que estejam sendo rechaçados devido a alguns discursos que surgiram nos últimos tempos, como é o caso das eleições.
A neutralidade dos observadores
No entanto, o trabalho da observação deve ser silencioso e sem a intenção de provocar interferência em qualquer processo relacionado às eleições. Não se trata de uma prática realizada pela autoridade eleitoral e tampouco consiste em fiscalização dos aspectos eleitorais, função esta reservada a outros atores políticos e sociais. A observação eleitoral é algo que deve ser feito com base em critérios pré-definidos, com uma metodologia própria para a coleta e avaliação dos dados e que culmine em um estudo técnico (de preferência público) ao final dos trabalhos.
Para isso, a atividade da observação deve possuir plena neutralidade política diante do pleito, guardando a devida distância de forma a preservar a sua idoneidade e que permita colher e analisar os dados referentes aos procedimentos adotados pelas instituições e atores políticos de maneira técnica e profissional. Além disso, o resultado deste trabalho deve ser sempre colaborativo com as instituições, apontando caminhos sem intenção de afrontar autoridades e competências institucionais, mesmo que seja através da crítica.
Na América Latina, tivemos uma verdadeira profusão de missões de observação eleitoral a partir dos anos 2000. Alguns países da região já aderiram a esta prática há décadas. É o caso da Colômbia e da Bolívia que, com base nos dados da Organização dos Estados Americanos (OEA), já contam com 14 e 18 missões internacionais, respectivamente. Porém, foi a partir deste novo século que muitos outros países se somaram, em especial nos últimos 10 anos, quando países antes resistentes à prática decidiram permitir a realização de missões em seus territórios. É o caso dos Estados Unidos e do Brasil, que contam com exatamente duas missões da OEA.
Podemos listar algumas razões para esta “resistência” por parte de alguns Estados latino-americanos. A partir da terceira onda redemocratizadora dos anos 80, havia muita esperança no continente sobre a democracia e sua definitiva permanência. Afinal, vários países estavam saindo de regimes ditatoriais militares e não desejavam mais seguir este caminho. A adesão à democracia era alta, como os próprios dados do Latinobarômetro da época indicavam. Aqui, podemos mencionar o relatório de 1997 que indicava um apoio à democracia de 63%, o ponto mais alto da série.
A integridade dos processos eleitorais
Diante desse quadro, os países pouco se preocuparam em manter a democracia íntegra, por entenderem que aderir a ela, realizar eleições periódicas e ter voto universal já era uma estratégia suficiente para manter este apoio em altos percentuais. Sendo assim, por que preocupar-se em buscar meios de legitimar processos eleitorais que, até então, aparentavam já usufruir desse status?
Esta compreensão até mesmo limitada do que seja observação eleitoral levou diversos governos a simplesmente julgar que a prática não seria necessária, talvez até com uma postura um tanto soberba. Houve uma confusão entre o fato de ter um calendário eleitoral periódico com voto universal e a integridade desses processos eleitorais. Para que uma eleição seja considerada íntegra, é preciso muito mais do que o mero voto no dia previsto para a cidadania. Além disso, nenhum processo, seja eleitoral ou não, é permanentemente isento de revisão e de melhoria, algo que também foi um pouco deixado de lado pelos líderes políticos da região.
No entanto, com o crescente descontentamento social aos governos, a pressão acerca dos procedimentos eleitorais aumentou devido aos rumos que a política latina começou a tomar, levando, em alguns casos, à contestação tanto das eleições quanto das autoridades responsáveis pela organização e administração das mesmas. As diversas tentativas de burlar as regras do jogo por parte dos atores políticos aliadas com a própria desesperança das sociedades latino-americanas, conduziu a uma preocupante situação que pode ter feito alguns países ver na observação eleitoral um meio de conter os danos já causados e de iniciar a recuperação de seus sistemas políticos no que tange à integridade.
A importância da observação também se reflete em quem a realiza. Existem missões nacionais e internacionais que percorrem o continente com o objetivo de acompanhar eleições e coletar dados, formando uma rede internacional de colaboração que tem como objetivo fortalecer as democracias latinas. Aqui, devemos mencionar o Acuerdo de Lima, uma rede de observação e integridade eleitoral formada por organizações da sociedade civil da América Latina e Caribe no ano 2000 e que tem como principal interesse contribuir com a transparência, legitimidade, legalidade e igualdade nos processos eleitorais. Este monitoramento eleitoral é essencial para a melhora nas eleições e também para o resgate dos valores democráticos na região.
Considerando o que foi dito e o atual panorama, é necessário ampliar a prática da observação eleitoral na América Latina, fortalecendo seus agentes e esclarecendo a cidadania e as instituições sobre seus aspectos e funções. É preciso se preocupar mais com a integridade eleitoral para resgatar o apoio à democracia e, para isso, a observação eleitoral tanto nacional quanto internacional pode ser de grande valia.
Autor
Doutorada em Ciências Jurídicas e Políticas pela Univ. de Salamanca. Pós-doutorada na Univ. Externado (Colômbia) e na Pontifícia Univ. Católica do Paraná – PUCPR (Brasil). Coordenadora geral da organização Transparência Eleitoral Brasil.