É uma boa notícia que, na América Latina, somos cada vez mais conscientes do racismo e de seus efeitos negativos. Um sintoma disso é que o comentário do presidente argentino sobre a origem naval de seus cidadãos tem sido tão amplamente criticado e tem ferido tantas sensibilidades. Entretanto, como toda ação gera uma reação, o racismo vem à tona quando os “não-brancos” ocupam o espaço público e/ou o poder. Aqueles que veem seus privilégios ameaçados ou se sentem prejudicados pelo fato de que esta é uma região mestiça com uma grande maioria de raízes afro ou indígenas respondem.
Isto explica o escárnio e a condescendência com que é tratada a presidenta da Assembleia Constituinte chilena, ou as críticas ao presidente peruano Castillo, que não se limitaram às suas posições políticas – algumas das quais, como as homofóbicas, são altamente questionáveis – mas também apontaram para sua origem e a origem de seus eleitores: eles visibilizaram o Peru “cholo” e “serrano” que envergonha a “pituquería” (as classes altas) por causa do risco de que os forasteiros pensem que “são todos assim”.
O racismo na América Latina é generalizado e bem distribuído; basta lembrar a atitude da esquerda correísta equatoriana com o líder indígena e ex-candidato à Presidência da República Yaku Pérez ou a lapidação da atriz mexicana Yalitza Aparicio por usar um vestido de alta costura. As “boas pessoas” atiraram-lhe pedras por querer ser como eles, chamando-a de “alzada” ou “igualada” e a esquerda “chaira” por não usar vestimenta indígena como o “huipil”, “rebozo” e “huaraches”.
Tirando a conquista da gaveta
Enquanto estátuas eram jogadas nas ruas, os governos cavalgavam a onda de críticas à colonização, buscando confrontos com a Espanha. As autoridades acham mais confortável e lucrativo criticar o colonialismo secular do que adotar políticas públicas para remediar seus efeitos. No entanto, pelo menos dois séculos se passaram desde a independência e o colonialismo ainda está lá porque sofreu uma mutação do exterior para o interior. Assim, o racismo como sintoma colonial tem sido mantido, fortalecido e sofisticado, porque beneficia as elites e as classes médias latino-americanas.
A insistência do Presidente López Obrador de que a Coroa espanhola e o governo se desculpem pela conquista é mais oportunismo político do que um desejo de falar seriamente sobre as estruturas coloniais que persistem e seus efeitos. É mais fácil procurar culpados no exterior, explorando o nacionalismo, os imaginários (anti espanhóis) “anti-gachupines” e a gratuidade geopolítica de atacar um país com poder limitado na região, que perderia mais do que ganharia com um confronto: 38% dos ativos bancários mexicanos são controlados por duas instituições sediadas na Espanha.
O casal presidencial nicaraguense também usou o colonialismo como uma bomba de fumaça. Eles estenderam o argumento de tal forma que provocaram a retirada do embaixador da Espanha em Manágua. Se prestarmos atenção aos comunicados de Ortega, a perseguição aos candidatos da oposição não é prova de autoritarismo, mas a justa defesa de um país sob ataque de agentes de potências estrangeiras.
As consequências da colonização
É óbvio que a colonização está aberta à crítica, ainda mais quando vista da perspectiva de hoje. Devemos discutir suas consequências e o envolvimento dos diversos atores. Além do papel da Coroa espanhola, é necessário discutir, por exemplo, as monarquias escravistas – lideradas pela Casa de Orange – ou o papel da Igreja Católica, que tentou nos convencer de que todos os padres eram “Bartolomé de las Casas”, quando na verdade era um grande beneficiária das misérias da colonização, com a circunstância agravante de ser o único ator daquela época com poder e presença atuais na América Latina.
Mas, acima de tudo, é necessário rever o papel das novas repúblicas e de suas elites na continuidade e no fortalecimento das estruturas coloniais. A independência das metrópoles não significou o desaparecimento dos mecanismos de exploração porque nos novos países houve um processo de divisão simbólica entre uma “república de brancos”, herdeiros e continuadores da ordem colonial, e uma “república de índios”, para a qual a independência não implicava melhores condições de vida. Além disso, se estamos falando de genocídio, Rosas não foi o único a perseguir os índios de sua república, atirando neles.
O épico anticolonial é uma parte substancial da identidade latino-americana. O que para Bolívar ou San Martín era a Coroa espanhola, para as novas gerações são os Estados Unidos, apesar de sua gradual perda de influência. A rigor, o papel do poder estrangeiro que extrai recursos e riqueza da “Pátria Grande” é agora ocupado pela China, que deveria ser o novo objeto da luta anticolonial.
Entretanto, nem a esquerda, nem a direita, nem os presidentes mais ativos em denunciar o saque e os crimes das potências estrangeiras repudiam a China. Nem seus intelectuais orgânicos produziram nada parecido com uma versão 2.0 de “As veias abertas” com a bandeira vermelha com estrelas amarelas pregadas ao perfil do continente em sua capa. Não sei se isto se deve ao afeto por Mao e sua revolução ou à dependência econômica da China. É mais provável que seja a primeira: a soberania e a dignidade do povo não podem ser vendidas.
Foto de Adolfo LJ en Photer