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A fraude não é comum, mas as teorias da conspiração sim

Coautoras Luciana Fernandes Veiga e Vitória Peres

Nas últimas semanas, a América Latina acompanhou as eleições presidenciais na Argentina. O candidato vitorioso da extrema direita, Javier Milei, alega que houve fraude eleitoral no primeiro turno. Esse discurso chama atenção, ao mesmo tempo que não surpreende, uma vez que vem se tornando cada vez mais recorrente em diversas democracias contemporâneas. Afinal, o questionamento da lisura do processo é um questionamento legítimo, mas o que tem sido observado é o uso desse discurso como estratégia política para deslegitimar o resultado eleitoral. O perfil desses líderes que aqui chamamos de populistas tem uma proposta disruptiva com as elites políticas tradicionais, abrindo mão das instituições políticas como mediadoras de conflitos, especialmente aderindo ao discurso “nós contra eles”. No discurso da liderança populista, há o intuito de somar-se ao povo, sendo ela uma personalidade capaz de enfrentar um sistema político corrompido. Nesse sentido, quaisquer mecanismos institucionais que busquem frear possíveis abusos de poder dessas lideranças são entendidos como resistência de um sistema político contaminado pelos interesses da elite que está se sentindo ameaçado.

A estratégia foi observada por Jair Bolsonaro, no Brasil, por Keiko Fujimori, no Peru, por Carlos Messa, na Bolívia, Benjamin Netanyahu, em Israel, López Obrador, no México, e no caso da Espanha, Alberto Feijóo, líder do Partido Popular, de centro-direita, com o apoio do Partido Vox, de extrema-direita. O que se consegue é desmobilizar os eleitores pouco engajados, de um lado, e manter o clima permanente de campanha entre os apoiadores destas lideranças, de outro. Não raro, culminando em casos de eleitores que não aceitam o resultado saído das urnas.

No ano passado, a live de julho de 2021 veiculada pelo presidente Jair Bolsonaro foi retirada do ar pelo YouTube. Nela, o então presidente questionava o sistema eleitoral brasileiro por conta das urnas eletrônicas, afirmando ter provas de que elas são passíveis de fraude eleitoral, e que, mais do que isso, já teriam sido fraudadas no pleito que o elegeu anos antes. Segundo Bolsonaro, ele deveria ter sido eleito com uma margem muito maior de votos sobre o segundo lugar. O YouTube retirou esta live do ar por constatar a existência de teoria da conspiração em seu conteúdo. Mas o que seriam teorias da conspiração? O sociólogo Ted Goerzel definiu que a teoria da conspiração provoca suspeitas de que atores influentes se unem em um acordo secreto e tentam alcançar um objetivo oculto, ilegal ou nefasto.

E como se constitui este pensamento? Os especialistas em desinformação e teorias da conspiração, Lewandowsky e Cook, apresentam sete sinais do pensamento conspiratório: contradição, ocorre quando o teórico da conspiração acredita em ideias que se contradizem entre si desde que elas desqualifiquem a narrativa oficial; suspeita absoluta, quando se apresenta extrema desconfiança em tudo que não se encaixe na teoria da conspiração; intenção nefasta, neste caso, ele presume sempre que os conspiradores agem com intenções espúrias; algo deve estar errado, acontece em situações em que o teórico até chega a abandonar as ideias que se tornam insustentáveis, mas jamais a noção de que algo esteja errado e que a narrativa oficial é fraudulenta;  vítima perseguida, aqui ele se autopercebe como  vítima e herói simultaneamente frente a conspiradores vilanescos; imune às evidências, ocorre quando toma evidências que contrariem uma teoria como parte da conspiração; por fim, a  reinterpretação da aleatoriedade se dá quando, mediante suspeita absoluta, o teórico crê que nada acontece por acaso.

No caso da live suspensa do ex-presidente Bolsonaro, foi realizada a análise de conteúdo para identificar a presença ou ausência das categorias do pensamento conspiratório em cada uma das 156 unidades de análise identificadas nas falas proferidas. Verificou-se que ele se utilizou destas categorias ao questionar a credibilidade das urnas: suspeita absoluta (56%), intenção nefasta (42%), algo deve estar errado (37%), vítima perseguida (25%), reinterpretação da aleatoriedade (21%), imune às evidências (12%) e contradição (10%).

Para ilustrar, vamos tomar um trecho da fala do ex-presidente com as duas estratégias mais frequentes: suspeita absoluta e intenção nefasta, na medida em que questiona as intenções do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso.

“Por que, senhor Barroso, nós estamos oferecendo mais uma maneira da transparência nas eleições, e Vossa Excelência é contra? Onde quer chegar?”

Quem se afeta com estas estratégias?  O efeito das teorias das conspirações está relacionado a aspectos sociais e psicológicos. Realidades marcadas por extremismo ideológico aumentam a incerteza e insegurança, levando à ansiedade por busca de sentido. As teorias da conspiração trabalham com a complexidade que envolve o processamento da realidade que se experimenta a partir dos sistemas de crenças individuais. Assim, pessoas mais sensíveis às evidências, com um ceticismo saudável e que buscam coerência tendem a ser menos afetadas pelas estratégias do que aquelas imunes às evidências, que trazem sempre uma suspeita absoluta e aceitam contradições.

Uma pesquisa qualitativa com oito grupos focais com eleitores da cidade do Rio de Janeiro, com o tema legitimidade das eleições, mostrou como as pessoas processam as teorias da conspiração sobre as urnas eletrônicas e, a partir da tomada de sentido, as reproduzem ou as refutam. Por meio de uma análise de conteúdo, verificou-se que as duas estratégias mais recorrentes utilizadas pelos eleitores foram suspeita absoluta e algo deve estar errado.

A seguir citamos a utilização da suspeita absoluta em que se verifica um nível extremo de desconfiança a respeito da realidade, onde tudo parece caber em uma teoria da conspiração.

“Eu acredito que deve existir algumas fraudes. Quando a gente vai abastecer o carro, pelo fato da mangueira ser preta, você pensa: ‘será que começou a sair combustível na hora certa?’ É a mesma sensação com a urna, ‘será que realmente o voto está sendo levado contado? Que está indo pra pessoa certa?’ É muito no escuro”.

Assim como houve reprodução da teoria da conspiração, também ocorreu a refutação da mesma. A passagem a seguir ilustra como o eleitor mostra mais apego às evidências, à coerência e a uma visão crítica.

“Como está se colocando a fraude está muito banalizada, é como se fosse fácil. Tem que saber que são milhares de urnas. Não acho assim tão fácil, tão banal fraudar. Tem a fiscalização, tem os órgãos. Também têm os trabalhos de pesquisa, eu não vi nenhum resultado absurdo onde a gente diga ‘foi fraudado’. Eu confio”.

A crença nas teorias das conspirações afeta e é afetada pela democracia.  O Brasil convive com uma baixíssima taxa de confiança interpessoal e reduzida taxa de confiança nas instituições políticas. Discursos com apelo conspiracionistas encontram solo fértil.

No caso do Brasil, o TSE enfrentou o desafio de conduzir as eleições enquanto defendia a sua legitimidade. Mesmo em meio a ataques, a pesquisa realizada pelo DataFolha em maio de 2022 informou que 73% dos brasileiros confiam nas urnas eletrônicas. Já no caso da Argentina, 84% da população tinha pouco ou nenhuma confiança na instituição eleitoral, de acordo com o Latinobarômetro de 2020. Assim como no Brasil, em 2018, o discurso que fragiliza instituições democráticas foi vencedor, elegendo Javier Milei o novo presidente argentino. Resta torcer para que as instituições argentinas sejam resistentes o suficiente para se manterem fortes a despeito de ataques, independentemente de onde vierem.

O estudo foi realizado pela equipe do Grupo de Investigação Eleitoral – GIEL  da UNIRIO, a partir da transcrição da live do presidente.

 

Luciana Fernandes Veiga. Professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ (atual IESP / UERJ), com Pós-doutorado na Univ. da Califórnia-Irvine.

Vitória Peres. Cientista política formada pela UNIRIO, trabalha com comunicação política, estratégia política e assessoria. É também pesquisadora do Giel.

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