É um mistério a maneira em que as ideias políticas viajam através do espaço e tempo, adquirindo formas impensáveis e inesperadas. Como elas encontram campo fértil em diferentes países para se firmarem como relatos disruptivos ou cosmovisões alternativas que propõem mudanças radicais. Parte disso está acontecendo agora com as ideias e narrativas libertárias na Argentina, oitenta anos depois de sua difusão nos EUA.
Uma de suas referências é Ayn Rand, filósofa e escritora norte-americana de origem russa, autora de volumosas obras escritas nos anos 1940 e 1950. “A nascente”, romance publicado em 1943, foi um de seus maiores êxitos literários, que, junto ao livro “ A Revolta do Atlas” (1957), ambos traduzidos para o espanhol, lhe deu fama e influenciou quem fundou, anos mais tarde, o Partido Libertário.
A nascente conta a história de Howard Roark, um jovem arquiteto que decide lutar contra as convenções sociais, ideias preconcebidas, preconceitos e “mentes fracas”.
O livro relata a batalha do personagem principal contra um establishment focado na adoração da tradição e na falta de originalidade. Os outros personagens desse romance encarnam vários arquétipos do caráter humano, todos eles variações entre Roark, o homem ideal, de espírito único, independente e íntegro, e o que a autora descreve como “second-handers” (subordinados); pessoas medíocres cujo objetivo é alcançar o sucesso a todo custo.
As complexas relações entre Roark e as diferentes pessoas que ajudam ou atrapalham seu progresso pessoal fazem desse romance uma espécie de fábula extensa, além de um drama romântico e uma obra filosófica sobre o espírito humano e uma exaltação do individualismo egoísta. O título é uma referência a uma citação da autora: “O ego do homem é a nascente do progresso humano”.
A nascente gerou uma corrente de seguidores no mundo intelectual nova-iorquino dos anos 1940, reunidos em torno das ideias de Rand, sempre ativa nos meios de comunicação com um estilo polêmico, beligerante e crítico. Esse grupo se autodenominou “Classe de ’43”, em referência ao ano de publicação do livro, precursor do que logo se chamaria de “movimento objetivista”, a crença de que “o homem vive para si mesmo, que a busca de sua própria felicidade é o mais elevado dos objetivos morais e que não deve se sacrificar pelos outros nem sacrificar os outros por ele”. Em outras palavras, o egoísmo racional como virtude moral, o individualismo ontológico e o capitalismo laissez faire. O romance foi adaptado ao cinema em 1949. A própria Rand escreveu o roteiro do filme e Gary Cooper interpretou o papel de Roark. E ela mesma seria interpretada por Helen Mirren em outro filme, A Paixão de Ayn Rand, em 1999.
Logo seguiram várias ondas de libertários nos EUA, radicalizando para a direita ou para as margens do sistema político tradicional. Nos anos 1970, homenageando a chamada revolução conservadora de Ronald Reagan; em 1990, em reação às reformas liberais da “era Clinton”; e em 2000, contra Obama e suas políticas consideradas “socialistas”.
“Ayn Rand, a virgem ateia da direita, renasce graças a Trump e ao Vale do Silício”, escreveu o jornalista Jonathan Freedland no The Guardian em abril de 2017: “A ideologia de Rand censura o altruísmo, eleva o individualismo à categoria de fé religiosa e concede licença moral ao egoísmo grosseiro. Rand foi por muito tempo a autora favorita da direita libertária americana, e agora vários de seus seguidores devotados estão no governo Trump”.
Ali recordava que o então diretor da CIA, Mike Pompeo, foi um dos conservadores que se disse “profundamente marcado” por A Rebelião de Atlas. E que Trump, que não é um leitor inveterado, como se sabe, disse certa vez que gostava de três livros, e inevitavelmente A nascente era um deles: “Fala sobre negócios, beleza, vida e emoções. Fala… de tudo”.
Em relação à última onda de “randistas”, os “príncipes do Vale do Silício”, Freedland descreve essa geração de jovens que, à margem do mundo político e do conservadorismo convencional, se sentem como Howard Roark e John Galt (o protagonista de A Rebelião de Atlas), decididos a mudar o mundo com seu talento, sem se preocupar com as consequências: quando Travis Kalanick (CEO da Uber) teve que escolher um avatar para sua conta no Twitter, optou pela capa de A nascente. Peter Thiel, o primeiro grande investidor do Facebook e uma das poucas pessoas que vive entre o Vale do Silício e o mundo de Trump, é randista. E, segundo o cofundador da Apple, Steve Wozniak, Steve Jobs comentou certa vez que A Rebelião de Atlas era um de seus “livros de cabeceira”.
A influência de Rand entre esses novos mestres do universo não se refere tanto ao ultraliberalismo econômico, mas à decisão obsessiva de se ater a uma visão pessoal e individualista da vida, sem avaliar o impacto que isso pode ter no entorno social. Ou acreditar assertivamente que esse impacto não pode deixar de ser benéfico para a sociedade humana.
Nas ideias dessa escritora norte-americana, falecida em 1982, o candidato libertário à presidência Javier Milei, favorito nas pesquisas, encontra uma de suas pedreiras ideológicas e fontes de inspiração, o protagonista de um novo romance argentino que combina ficção e realidade, entre utopias e distopias.
*A versão original deste texto foi publicada no Clarín.
Autor
Cientista político e jornalista. Editor-chefe da seção Opinião do jornal Clarín. Prof. da Univ. Nacional de Tres de Febrero, da Univ. Argentina da Empresa (UADE) e de FLACSO-Argentina. Autor de "Detrás de Perón"(2013) e "Braden o Perón. La historia oculta"(2011).