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El Salvador: a mentira desejada

A família Bukele que governa El Salvador executa um gasto multimilionário em servidores dedicados a multiplicar a propaganda oficial nas redes sociais e apagar as vozes dissonantes.

Com o termo “a mentira desejada”, Humberto Eco se referia ao que estava acontecendo dentro de uma multidão crescente que não se interessa em saber a verdade, mas em escutar o que seus ouvidos querem ouvir, ler o que suas mentes gostariam que fosse realidade e frequentar espaços nos quais todos opinaram sobre o que eles mesmos acreditam. É uma necessidade de reforçar as crenças pessoais acima de qualquer evidência em contrário.

Pode-se mostrar provas aos membros do culto, até levá-los à estratosfera para verificar a redondeza do planeta e, ao aterrissarem, voltarão aos seus correligionários para reafirmar sua convicção de que a Terra é plana.

Então, cante comigo aquele velho bolero: “Já vou vivendo de suas mentiras / Sei que seu carinho não é sincero / Sei que mente ao beijar e mente ao dizer “te amo” / Me resigno porque sei que pago pela minha maldade de ontem / Sempre fui desviado / Por isso te amo tanto / Mas se me dá felicidade com seu amor fingido / Minta para mim por uma eternidade que me faz feliz com sua maldade”.

Com dois violões e um par de maracas, trios ou solistas antigamente cantavam esses versos nas ruas do centro de San Salvador, cujas letras todos conheciam ao ler o Cancionero Picot. Meio século antes de o famoso semioticista e filósofo italiano escrevê-la, o conhecimento dessa realidade patológica da mentira desejada já era popular. É claro que não é o mesmo que Lucho Gatica recitá-la em um de seus boleros na América do Sul, como é para um intelectual acadêmico na Europa escrevê-la.

Por que gostamos de mentiras?

A acadêmica Carolina Escobar Sarti, em seu artigo Miénteme más: marca de fábrica, refletiu há alguns anos no jornal guatemalteco Prensa Libre: “não aceitamos as mentiras que vêm igualmente de amantes, governantes ou certos líderes religiosos porque sua maldade nos faz felizes? Não há um masoquismo persistente nisso?”

Vamos aos fatos, porque hoje está na moda dizer que “dado mata relato”. A família Bukele que governa El Salvador executa um gasto multimilionário – dentro das fronteiras salvadorenhas e no resto do mundo – para confrontar a realidade no mundo virtual. Para isso, conta com exércitos de servidores – nunca melhor denominados – dedicados a multiplicar as versões que hora após hora escrevem em um comando central de propaganda.

Esse dado foi publicado em novembro de 2022 pela Agência Reuters da Grã-Bretanha. A jornalista Sarah Kinosian divulgou os resultados de uma profunda e extensa investigação, segundo a qual centenas de pessoas trabalham em instalações do governo salvadorenho produzindo notas falsas para enaltecer o governante e insultar e atacar seus críticos.

Por um salário mensal de seiscentos dólares, esses funcionários dedicam seu dia de trabalho a adicionar apoiadores fictícios do governante, elogiando suas falsas políticas e obras de ficção. A propaganda flui 24 horas por dia, 365 dias por ano. Mas esses funcionários, além de manter a máquina de propaganda em funcionamento, também realizam tarefas como “reportar e registrar queixas contra as publicações desses críticos com o objetivo de fazer com que as plataformas fechem suas contas”, segundo o relatório da Reuters.

Muitas dessas tarefas são realizadas em escritórios governamentais e são supervisionadas diretamente por funcionários do governo, entre eles um ministro que não está ligado à equipe de comunicação e nem da imprensa presidencial, ou à mídia estatal, segundo a investigadora. Kinosian também revelou que existem fazendas de trolls cuja única função é criar milhares de contas falsas no X para apoiar Bukele e seu partido Nuevas Ideas.

O documento afirma que a estratégia de Nayib Bukele consiste em “inundar com propaganda, demonizar as instituições encarregadas de desacreditar essa propaganda – a imprensa livre e a sociedade civil –…”, impor a agenda, reprimir a dissidência e estabelecer uma atmosfera de terror permanente.

Contágio iminente

Ao tomar conhecimento da publicação da agência britânica, o governo estadunidense manifestou preocupação com o perigo de contágio dessas estratégias sendo “usadas por outros atores em outras regiões”. Foi exatamente isso que aconteceu com Daniel Noboa, no Equador, e Javier Milei, na Argentina, que seguiram o mesmo caminho e roteiro, centímetro a centímetro.

O êxito se deve, em parte, ao uso permanente dos mais modernos recursos de comunicação que penetram profundamente e cobrem todos os espaços, inclusive o analógico. Outro elemento tem a ver com a convicção das pessoas de que é preferível repetir a propaganda oficial a se expor à repressão brutal dos agentes do regime, que são totalmente inescrupulosos e têm a aquiescência e o apoio do presidente, quando não estão agindo em obediência direta às suas ordens expressas de assassinato e desaparecimento. Esses são os oprimidos pelo terror estatal.

E embora muitos saibam que no reino de Bukele nem os aeroportos, satélites, usinas nucleares ou trens-bala prometidos são reais, muitos também sabem que seus salários dependem da persistência do tirano no poder. São, em sua maioria, pessoas que escolhem a fé em vez da moral, convencidos de que acreditar em Deus é suficiente para limpar a alma.

Mas há também um patético mecanismo de autodefesa em ação. Ninguém está interessado em assumir o erro depois de ter defendido fanaticamente: “ou orgulhosamente nayiliber”, especialmente um estudante universitário orgulhoso. E, no entanto, a única universidade governamental está agonizando, estrangulada pelas mãos de Bukele. Em março, os administradores da UES tiveram de demitir todos os professores assistentes sem aviso prévio e eles não poderão mais pagar suas contas de luz, internet ou água. 

Menciono a provação e a agonia da Universidade de El Salvador porque foi lá que Bukele fez sua única aparição pública como candidato à presidência em 2019, na qual apresentou uma lista inesquecível de promessas. Prometeu aumentar o orçamento da UES até que ela se tornasse a universidade com os maiores recursos financeiros da América Central. Nominalmente, o orçamento anual da Universidade de El Salvador é de 130 milhões de dólares, mas nos últimos três anos ela só recebeu cerca de 70 milhões de dólares. Isso é 102 milhões de dólares a menos do que o governo de Daniel Ortega dá à UNAN todos os anos, ou seja, menos da metade. Honduras destina 560 milhões de dólares por ano para sua universidade, enquanto os ticos alocam 18 vezes mais anualmente.

As universidades devem reunir as mentes mais poderosas e os espíritos mais críticos de uma sociedade, mas na UES não se ouve uma única crítica ao regime que assassina a educação, a ciência, a tecnologia e a cultura. Como há décadas, nas ruas do centro de San Salvador, essa universidade segue sua vida cantando “Minta para mim por uma eternidade que me faz feliz com sua maldade”. Universidade infame.

*Publicado originalmente no El Independiente, El Salvador.

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