Explicar as causas da vitória retumbante de Donald Trump na última eleição requer examinar vários tipos de fatores, se não quisermos simplificar. Claro, a economia, mas não só. Me ocorrem ao menos três âmbitos importantes para entender essa vitória ou, visto no sentido oposto, a notável derrota da vice-presidente Kamala Harris: a) acertos e erros da estratégia eleitoral, b) capacidade de conexão com as preocupações do eleitorado, incluindo as socioeconômicas, e c) um assunto que tenha grande profundidade, mesmo que não seja tão visível, como a revolta cultural em curso.
Observar a curva de intenções de voto é um bom indicador dos erros de estratégia eleitoral do Partido Democrata. O desgaste do presidente Biden se agravou radicalmente com o resultado do debate eleitoral: a vantagem de Trump saltou consideravelmente nos gráficos. Mas a decisão tardia de se afastar foi acompanhada de uma precipitada nomeação de sua vice-presidente. Ninguém respondeu à observação feita por um líder democrata: “não importa tanto o quanto Kamala seja simpática e progressista, mas se é disso que realmente precisamos para impedir que Trump volte à Casa Branca”.
Por sua vez, a nova indicada optou por uma campanha de diferenciação e contraste, o que se refletiu na escolha do candidato a vice-presidente, na pessoa de Tim Walz, uma referência na ala esquerdista do partido. Essa foi a melhor prova de que Harris não buscou competir pelos votos do centro, mas sim arrastar seus seguidores através do entusiasmo do discurso progressista. Um entusiasmo que contagiou muitos meios de comunicação, jornalistas e analistas. Mas foi uma aposta arriscada.
De fato, tudo indica que o discurso de Harris não se conectou claramente com as preocupações dos habitantes da América profunda. Enquanto os republicanos se dedicaram a responder às preocupações das localidades rurais e da periferia urbana, em muitos casos com promessas não cumpridas, mas bem focadas, o discurso de Harris foi bastante generalista e carregado de sinais progressistas. Por outro lado, teve a dificuldade de tentar se desprender do legado de Biden, em particular o aumento da inflação e a permissividade em assuntos de imigração.
Foi assim que ocorreu o debate eleitoral entre as duas candidaturas, com Harris se mostrando capaz de seguir o roteiro preparado por seus assessores, enquanto Trump optou pela improvisação de um personagem que estava visivelmente cansado. Por isso, foi amplamente aceito que o vice-presidente saiu vitorioso do debate. Isso foi interpretado por muitas pessoas como um prenúncio de sua vitória eleitoral. Pena que, em setembro, os eleitores republicanos já haviam decidido seu voto em mais de dois terços do eleitorado. E o fizeram com base na imagem de que Trump estava enfrentando uma candidatura de esquerda radical.
Assim começou a última fase da campanha, na qual os candidatos tiveram que cuidar especialmente para evitar erros não forçados. Harris concentrou seu discurso na unidade nacional, ao mesmo tempo em que atacou diretamente Trump. Mas como seu oponente já vinha fazendo esses ataques personalizados há algum tempo, não pareceu muito estridente que ela fizesse isso. Surpreendentemente, porém, Trump não foi nada cuidadoso com seus excessos. Suas explosões sobre negros e porto-riquenhos se tornaram virais imediatamente no final da campanha. Outra informação para aumentar o otimismo democrata. Mas então surgiu um novo eleitor de Trump, que declarou que votaria nele, embora não gostasse de seu comportamento pessoal e social. Assim surgiu o voto pragmático, que era apenas uma parte do voto oculto que não queria se manifestar nas pesquisas.
Mas todos esses fatores parecem aglutinados por outro de caráter cultural, mais simbólico e ideológico: a revolta contra a cultura progressista ou, como se tornou popular nos Estados Unidos, a cultura woke. Na época da corrida de Hillary Clinton, essa rebelião tinha uma referência maior à conotação elitista que supostamente representava. Desta vez, embora a rejeição ao elitismo cultural tenha estado presente, a rebelião assumiu um caráter mais substantivo contra os valores progressistas.
Assim, a aliança pretendida por Harris contra o trumpismo parece ter saído pela culatra. Contra seu feminismo, jovens, latinos e afro-americanos; contra seus apelos por sindicatos, trabalhadores industriais preocupados com a inflação e a proteção da indústria nacional; contra seu apelo pelo aborto legal, a rejeição de mulheres rurais e evangélicas. Por outro lado, no campo progressista, também restou quem considerou que Harris ficou aquém na condenação da guerra em Gaza ou do problema das armas no cenário nacional.
Essa rebelião contra a cultura progressista não se manifesta apenas nos Estados Unidos, é um fenômeno mundial. Tudo indica que a ampliação dos direitos humanos nos últimos trinta anos não teve o consenso que deveria ter. Para muitos, em vez de novos direitos, são expressões de desejo que se tornaram parte do discurso progressista. Parece que, por algum tempo, essas derivações provocaram apenas um ressentimento silencioso de grande parte da sociedade civil, mas cada vez mais tomam uma forma mais expressiva e política. Já foi dito que alguns padrões estão muito à frente das pessoas comuns. Mas, se assim fosse, o problema se referiria a uma falta de deliberação democrática suficiente, refletindo uma imposição de valores contrária à democracia comunicativa.
Autor
Enrique Gomáriz Moraga tem sido pesquisador da FLACSO no Chile e outros países da região. Foi consultor de agências internacionais (UNDP, IDRC, BID). Estudou Sociologia Política na Univ. de Leeds (Inglaterra) sob orientação de R. Miliband.