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Interrogações sobre a transição cubana (ou a democratização possível)

A entropia, o caos e a persistente crise em Cuba são evidências irrefutáveis. Nem as narrativas mais sofisticadas do pós-verdade conseguem desenhar uma Cuba próspera, empoderada e convencida de seu bem-estar futuro. A Cuba que percebemos é muitas vezes tragicamente desoladora e contrasta com o triunfalismo das narrativas oficiais. Esta assimetria entre realidade, discurso(s) oficial(ais) e múltiplas expressões acadêmicas ou baseadas em opiniões pode nos dar pistas para refletir sobre a tão provável mudança política por meio da transição ou, caso contrário, as razões da persistência do regime atual. 

Cuba parece ser a exceção entre os casos de regimes não democráticos, sejam os autoritarismos diversos ou totalitarismos. Apesar de seus vínculos econômicos e políticos com a antiga URSS e o campo socialista, sobreviveu à sua queda. Também foi capaz de transferir de forma ordenada a liderança carismática histórica e garantir a continuidade do regime.

Além disso, o regime teve capacidade para reintegrar-se a coalizões estratégicas regionais (Venezuela, Equador, Brasil, Argentina) durante as “ondas de Governos de esquerda”, de negociar conjunturalmente com potências internacionais (EUA), de projetar-se como um destino para investimentos setoriais (turismo para Espanha, Canadá, Itália, etc.) ou sobreviver por mais de seis décadas às medidas de embargo econômico.

A somatória destes fatores constitui o núcleo duro de uma narrativa que ressalta a legitimidade, legalidade e capacidade do regime para defender um projeto de soberania nacional e seu profundo anti-imperialismo seletivo. Esta narrativa, com uma clara orientação continuista, é observada nas elites políticas, sua diplomacia e em setores acadêmicos internos e externos.

Esta perspectiva oficial aponta qualquer contradição interna como uma derivação da agressividade do “bloqueio” norte-americano e assume a mudança como uma reforma controlada; naturalmente, pela liderança do Partido Comunista de Cuba (PCC) e do Governo. Qualquer outra mudança será vista como uma ameaça à soberania nacional. Aí encontraremos a aversão oficial ao termo “transição”, entendido como “projeto político contrarrevolucionário pró-EUA”.

A transição política é uma categoria analítica, não ideológica, que se refere a uma mudança de regime político. E seu núcleo duro é a conformação de atores com perspectivas diversas e projetos confiáveis para negociar e causar uma mudança na estratégia dos demais atores em condições contingentes e de muita incerteza.

Em síntese, nenhum ator independente seria capaz de garantir uma mudança política, e assim a capacidade para estabelecer alianças estratégicas com outros atores externos para fortalecer sua estratégia de negociação entraria em jogo. Na terceira onda democratizadora, as diferenças de poder entre reformistas do Governo e moderados da oposição foram decisivas.

Outros estudos interpretaram a transição política, de qualquer signo, como uma dinâmica de ação e reação entre as elites do regime e a sociedade civil. A mobilização popular desempenha um papel importante, pois pode definir o ritmo da transformação ao obrigar o regime a optar entre alternativas: repressão, integração ou transferência de poder.

A transição política pressupõe certas condições estruturais, contextuais, históricas e de escolha estratégica de atores interessados na mudança política. O tipo de regime e seu marco institucional podem explicar a homogeneidade no interior da elite política e a autonomia da emergente sociedade civil cubana. Neste sentido, a matriz totalitária do regime difere dos autoritarismos burocrático-autoritários de pluralidade limitada dos modelos clássicos, pois tem garantido a coesão e a rotação das lealdades da elite política.

Tanto no institucional como no ideológico, a unidade tem sido o núcleo articulador da governança e da legitimidade do regime. O PCC se antepõe às estruturas de Estado e governo, e seu gabinete político, como órgão de vigilância e controle, e as regras eleitorais têm garantido o consenso e a rotação de lealdades dentro da elite.

Este controle se estende ao órgão legislativo, pervertendo suas funções deliberativas em ações de ratificação de decretos de uma cúpula cada vez mais invisível. Os órgãos supremos do Estado (o Conselho de Estado) e o Governo (Conselho de Ministros) prestam conta ao presidente, que, fiel à vocação personalista do regime, é o líder supremo do partido único (PCC).

A unidade estrutural e narrativa do regime deixa pouco espaço ao dissenso, à reflexão crítica e à discussão de opções intra-elite, condição necessária para o surgimento de fraturas e de um setor reformista alternativo. Predominou no cálculo das elites a estabilidade continuísta para manter-se no poder e conservar seus privilégios.

Para o regime, a sociedade civil “institucionalizada” são “organizações sociais e de massas”, devido a sua visão comportamentalista e mecanicista do social. A sociedade será, então, uma “massa” amorfa incapaz de autonomia reflexiva, e deve, portanto, ser dirigida. Assim, o uso frequente de mecanismos complementares de democracia direta, como consulta popular, referendo e plebiscito, constituem processos de participação popular com incidência induzida.

Superar este controle de décadas do Governo sobre qualquer forma de autonomia cívica é um dos desafios mais importantes da sociedade civil emergente, que deve enfrentar registros, monitoramentos, sanções, proibições e inclusive criminalização e repressão.

Nos últimos anos, percebe-se um crescente ativismo em setores da sociedade civil sobre uma série de temas e cujos posicionamentos ultrapassam as clássicas clivagens esquerda-direita ou governo-oposição. Entretanto, estas restrições limitam a capacidade de interação, o que gera fragmentação nas ações coletivas.

Essas limitações afetam os grupos de oposição com posicionamentos que vão desde propostas moderadas a intervenções militares radicais de potências estrangeiras, ou promover eclosões de rebeldia interna antigovernamental. É difícil visualizar a capacidade desses atores para negociar em um cenário de transição. Mas um pacto entre reformista da elite e moderados da oposição deve ser a estratégia predominante. As opções radicais nunca garantiram uma transição política exitosa para a democracia.

Durante o último ano, as circunstâncias internas complicaram para o Governo. Os efeitos nefastos da pandemia de COVID-19 ou da dengue afetaram o turismo. O desabastecimento de alimentos e produtos de primeira necessidade, a crise energética, a inflação galopante e a péssima qualidade dos serviços médicos têm impulsionado várias expressões de dissidência.

Neste sentido, o caráter massivo, espontâneo, transversal e politizado das manifestações populares de 11 de julho de 2021 demonstra que o mal-estar da população pode desencadear dissensos com resultados incertos. A resposta repressiva do regime descarta negociar reformas liberalizadoras. Sua estratégia predominante será a continuidade baseada na doutrinação sistemática, na cooptação manipuladora, na “saída” de setores dissidentes e na repressão de qualquer sujeito que ameace a estabilidade e a continuidade do regime.

Na história política de Cuba como república, as mudanças de regime por rupturas violentas predominaram, seja na forma de golpes de Estado (1952) ou revoluções (1933, 1959) sobre pactos (1939), e a única experiência de democracia se reduz a doze anos (1940-1952). A maioria dessas experiências, entretanto, foi silenciada, distorcida e manipulada pela propaganda ideológica do Governo, que as descarta como base para o aprendizado político das novas gerações.

O grande desafio da transição cubana hoje é desmistificar e revalorizar o núcleo central do mito revolucionário: a unidade (totalitária), e assumir como condição de soberania republicana as noções de pluralidade, deliberação, tolerância e inclusão.

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Professor e pesquisador da Univ. Iberoamericana (Cidade do México). Doutor em C. Política pela FLACSO-México. Especializado em história institucional republicana de Cuba, transição política e democratização.

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