Javier Milei, autodenominado libertário anarcocapitalista, tornou-se o novo presidente da Argentina em 10 de dezembro. Embora a migração não tenha sido uma questão central durante a campanha eleitoral, sua vitória levantou preocupações sobre o futuro da governança da migração na Argentina e na América do Sul.
Nos últimos 20 anos, a Argentina desempenhou um papel de destaque na política regional de migração, e sua lei de migração de 2004 teve uma influência significativa em outras leis da América do Sul e da América Latina e em geral. Além disso, a Argentina propôs em 2002 a adoção dos Acordos de Residência do MERCOSUL, que estabeleceram uma estrutura para a livre mobilidade, permitindo que cidadãos sul-americanos entrem, residam e trabalhem em outros países da região. Os Acordos foram ratificados por oito países da região, além da Argentina: Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai.
Com base no programa eleitoral de Milei e nas declarações de membros importantes do partido, prevemos três possíveis tendências para a agenda de seu governo nos próximos quatro anos.
Seletividade migratória
Seguindo suas ideias libertárias, o princípio principal de Milei se concentra em minimizar o papel do Estado. Ele acredita que a abertura das fronteiras e a imigração podem beneficiar a economia se seguirem as regras do livre mercado. Em sua opinião, o estado de bem-estar social é um ímã que atrai migrantes “indesejáveis” e “desnecessários”. Portanto, a eliminação do estado de bem-estar social e dos serviços públicos levaria a uma auto-seleção dos migrantes, atraindo apenas aqueles que “vêm à Argentina para trabalhar”. Seu programa também propõe atrair especialistas cujos conhecimentos são essenciais para a economia argentina, de forma semelhante aos esforços de outros países para atrair os “melhores e mais brilhantes”.
O enfoque proposto tem duas grandes incoerências importantes que precisam ser abordadas. Em primeiro lugar, é importante esclarecer como o governo planeja atrair trabalhadores altamente qualificados, especialmente considerando a atual situação econômica da Argentina. A crise levou a uma redução significativa nos salários dos profissionais e está causando a emigração de milhares de argentinos. As estimativas indicam que, entre setembro de 2020 e abril de 2022, mais de 300.000 argentinos emigraram, a grande maioria deles jovens profissionais. O Brasil e o Chile são dois dos três principais países de destino desses emigrantes.
Em segundo lugar, vale a pena observar que na Argentina a porcentagem de imigrantes empregados é maior do que a de cidadãos nativos. Em outras palavras, os imigrantes já vêm para a Argentina para trabalhar. Entretanto, devido ao fraco desempenho econômico do país nas últimas duas décadas, a taxa de imigração permaneceu estagnada. Embora a Argentina continue a ser um dos principais países receptores no contexto sul-americano em termos relativos, de acordo com dados da ONU, em 2005, os migrantes representavam apenas 4,29% da população e, em 2020, essa porcentagem só aumentou para 5%.
Entre 1870 e 1930, a Argentina foi o segundo destino de migração mais popular em todo o mundo, logo depois dos Estados Unidos. No entanto, as coisas mudaram drasticamente desde então. Atualmente, a Argentina ocupa o oitavo lugar no ranking mundial quanto ao recebimento de venezuelanos, apesar do fato de que o deslocamento de cerca de oito milhões de pessoas pela Venezuela desde 2015 representa o maior da história da América do Sul. Como argumentou o sociólogo Hein de Haas, a única maneira de reduzir a imigração é destruir a economia. A Argentina representa uma confirmação paradigmática disso.
A securitização da migração
Alinhado com parte do discurso político na Europa e nos EUA, e influenciado pelos aliados políticos do PRO/Juntos por el Cambio (centro-direita), algumas propostas visam acelerar a expulsão de estrangeiros que cometem crimes. Isso levanta duas questões. Em primeiro lugar, já existem várias disposições em matéria de expulsão. Como na Europa, essas disposições devem estar em conformidade com os instrumentos internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos é especialmente relevante aqui. Em segundo lugar, as evidências disponíveis não indicam que a Argentina esteja enfrentando um desafio urgente nesse âmbito. Por exemplo, na província de Buenos Aires, que tem mais de 16 milhões de habitantes e é a maior do país, a população carcerária nascida no exterior permaneceu estável em cerca de 5% do total nos últimos 20 anos.
Nacionalização/desglobalização
Milei propôs a retirada da Argentina de organizações e fóruns internacionais, como os BRICS, e provavelmente impedirá que a Argentina retorne à UNASUL. Ele também prometeu desmantelar o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). O MERCOSUL é a principal organização regional da América do Sul, em funcionamento desde 1991. Todos os países da região são membros plenos ou associados.
Se essa proposta se concretizar, a Argentina enfrentará dois grandes desafios. Em primeiro lugar, o MERCOSUL tem sido um aspecto crucial da política externa da Argentina há mais de três décadas, proporcionando estabilidade à região e uma plataforma para a Argentina expressar suas ideias, interesses e demandas em nível internacional e regional. Abandonar a organização, portanto, enfraqueceria a capacidade da Argentina de enfrentar desafios regionais e globais compartilhados, isolando o país do resto da região e do mundo. Em segundo lugar, isso poderia afetar o funcionamento dos acordos de residência do MERCOSUL mencionados anteriormente. Vale a pena observar que quase 90% dos imigrantes na Argentina vêm da América do Sul. Por outro lado, 6 dos 10 principais destinos dos argentinos encontram-se na América do Sul. O colapso do atual regime de migração regional poderia complicar seriamente a governança da mobilidade humana na região, afetando o acesso aos direitos de todos os cidadãos sul-americanos, inclusive os argentinos.
Resta saber até que ponto essas propostas de políticas serão implementadas. Os partidos de oposição controlam o Congresso Nacional, e nenhum dos governadores provinciais pertence ao partido de Milei. A maioria das pessoas que votaram em Milei o fizeram porque estavam insatisfeitas com o governo anterior e com a situação econômica atual. Portanto, seria um erro se Milei interpretasse sua eleição como um endosso total de todas as suas propostas políticas.
*Uma versão ligeiramente diferente deste artículo foi publicada no The Conversation aquí:
Autor
Internationalist e pesquisadora sênior da Eurac Research (Bolzano, Itália) e pesquisadora associada do Instituto Universitário Europeu (Florença, Itália). É doutora em Ciências Sociais pela FLACSO-Argentina.
Professor de Direito Migratório na Universidade de Bristol, no Reino Unido, e Diretor da Cátedra Global Nebrija-Santander sobre Migração e Direitos Humanos na Universidade de Nebrija, em Madrid.