Há datas que marcam uma época e imbuem de simbolismo as gerações que as vivem. Como se fossem uma marca, definem o momento específico e configuram um legado que define boa parte do futuro. Alguns têm a capacidade de transcender o entorno físico onde ocorre o evento que lhes deu sentido, de modo que constituem uma referência de maior escala. O 11 de setembro de 1973 é um deles. Não só marcou o fim violento de um processo político em um país específico, o Chile, que teve de carregar sua marca dramática por décadas, mas também impactou de forma notável a sociedade internacional.
O golpe de Estado que terminou com os mil dias do governo de Salvador Allende configurou uma sinfonia doentia de significados no Chile. Quebrou sua institucionalidade, rompendo o modelo que até então havia sido excepcional na região, junto ao Uruguai; enterrou os sonhos de gerações que mesclavam a ilusão da mudança democrática com a da revolução incruenta e que faziam do lema “socialismo em liberdade” a bandeira de sua existência; não soube valorizar o potencial desestabilizador que tinham certos setores econômicos (caminhoneiros); demonstrou sua imperícia ao não entender que a sociedade chilena estava dividida de tal forma que a proposta política de transformação era apoiada por um contingente social que não era majoritário e que tudo isso se traduzia em um sistema partidário fragmentado em que a formação de maiorias era muito complicada; e propiciou que a “mão invisível” dos Estados Unidos estivesse presente, incentivando os militares a atuarem em seu papel de salvadores da pátria e dos valores ocidentais, cuja fama de garantidores da constituição por meio século seria arruinada.
No fim das contas, aquele 11 de setembro também deixou a imagem de um presidente que, ao acabar com sua vida na Casa da Moeda, fortemente bombardeada, elevou o nível da complexa combinação weberiana da ética da responsabilidade e da convicção. O fracasso da esquerda chilena em promover mudanças políticas, econômicas e sociais, como mostra o recente trabalho de Daniel Mansuy (Salvador Allende. La izquierda chilena y la Unidad Popular) e Gonzalo Vial (El fracaso de una ilusión) e, antes disso, entre outros, de Tomás Moulian e Manuel Antonio Garretón, bem como de Juan Gabriel Valdés, a resposta de Allende foi reunir o derramamento de seu sangue com o de todos os assassinados naquele dia fatídico e os que se seguiram, incluindo o sangue representativo de Víctor Jara, assassinado cinco dias depois, aos 41 anos, após ser torturado. Um desastre que, ao contrário do que aconteceu na Espanha após o golpe de Estado de julho de 1936, teve alguma reparação, apesar do tempo transcorrido, como prova a recente condenação unânime pelo Supremo Tribunal dos autores do assassinato do cantor e compositor.
Mas aquele 11 de setembro também teve um impacto internacional. A interrupção do processo chileno foi o correlato, cinco anos depois, da invasão dos tanques soviéticos em Praga, que deteve os ideais de mudança política incentivados pelo governo de Alexander Dubcek. Assim, as restrições da Guerra Fria foram reforçadas. Ironicamente, na América Latina, deram vazão ao aprofundamento dos traços totalitários da revolução cubana, enquanto estimulavam a agitação nos quartéis para promover a inspiradora doutrina de segurança nacional da época.
Mesmo na Itália, a proposta de um compromisso histórico, que o PCI e a Democracia Cristã tentavam aproximar, foi colocada em segundo plano. Na Espanha, o franquismo cerrou fileiras, mas a oposição entendeu a necessidade de uma ação conjunta, que culminaria na coincidência da Plataforma Democrática e da Junta Democrática. Acima de todo esse clima, estava a figura do então Secretário de Estado estadunidense, Henry Kissinger, que, meio século depois, ao celebrar seu centenário, segue recebendo atenção como o oráculo da história.
O Chile teve uma das ditaduras mais longas da região e, além de perseguir a esquerda, foi o primeiro país a introduzir políticas neoliberais. Ambos os elementos tiveram consequências relevantes nas décadas seguintes. Embora a ditadura tenha sido desmantelada pelo voto popular após um plebiscito em 1988, a lei eleitoral elaborada forçou uma aliança de partidos e movimentos que haviam assumido uma posição muito crítica ao regime de Pinochet.
A Concertación, integrada por democratas-cristãos, radicais e socialistas em diferentes facções, foi, portanto, a resposta política que governou o país por vinte anos, condicionada por enclaves autoritários, como disse Manuel Antonio Garretón, que foram sendo gradualmente eliminados. No entanto, a constituição que governou os destinos do país continuou sendo a elaborada na época de Pinochet (1980).
A alternância, graças ao triunfo eleitoral da direita liderada por Sebastián Piñera em 2010 e 2018, confirmou que o acordo democrático era factível no novo estado de coisas. No entanto, o conflito social estava longe de ser canalizado. Diferentes mobilizações sociais traduziram o descontentamento de um modelo que não satisfazia as novas gerações e destacaram o fracasso de algumas das políticas mais emblemáticas da ordem neoliberal. O sistema previdenciário, a saúde e a educação foram exemplos de mau governo e péssima gestão que envenenaram o clima social. Naquela época, o passado se mostrava como um terreno no qual se faziam perguntas em busca de explicações da vida cotidiana. Nesse cenário, cinquenta anos depois de 11 de setembro de 1973, as respostas podem ser encontradas.
*Outra versão deste texto foi publicada em El Ciervo, nº 800, julho-agosto de 2023, Barcelona.
Autor
Diretor do CIEPS – Centro Internacional de Estudos Políticos e Sociais, AIP-Panamá. Professor Emérito da Universidade de Salamanca e UPB (Medellín). Últimos livros (2020): “O gabinete do político” (Tecnos Madrid) e em coedição “Dilemas da representação democrática” (Tirant lo Blanch, Colômbia).