No cenário latino-americano, as regras saudáveis do jogo político podem ser distorcidas, mas felizmente não muito, em especial em países profundamente divididos, como é o caso na maioria da região hoje. Esta é uma lição que muitos insistem em ignorar, desde o Rio Grande até a Tierra del Fuego. E os últimos acontecimentos (dramáticos) no Peru são um lembrete disso.
Possivelmente, a terceira tentativa de vacância impulsionada no Congresso peruano pelos partidos de oposição pode não ter obtido votos suficientes para destituir o presidente Pedro Castillo. Mas diante da possibilidade de que seus antigos aliados pudessem pregar-lhe uma peça, o mandatário optou por forçar as regras do jogo e dissolver o Congresso poucas horas antes da votação da moção de vacância. Um voo adiante que só o ajudou a descobrir o quão isolado estava. Todos, desde a liderança militar até os deputados de seu próprio partido, Perú Libre, rejeitaram a manobra presidencial. Hoje Castillo segue abandonado e sozinho na mesma prisão onde também se encontra o ex-presidente Alberto Fujimori.
Quando a imprensa e os observadores tentam explicar como é possível que tenha chegado a esta situação, enfatizam a incapacidade de Castillo de governar o país. E é certo que sua conduta errática dos assuntos públicos é um fator fundamental para explicar esta crise. A contagem deste ano e meio de sua presidência mostra um espetacular acúmulo de tropeços e rupturas. Formou, neste breve período, cinco governos, algumas vezes com representantes radicais, outras com moderados, e inclusive com conservadores. A última grande ruptura foi com o estrategista de seu projeto, Vladimir Cerrón, o homem que formou o partido Peru Libre e o levou à presidência.
Sem dúvida, esta incapacidade de orientar o navio do país é uma razão poderosa para explicar a atual situação. Entretanto, não é a única e talvez não seja a mais profunda. Creio que a causa fundamental está relacionada ao desconhecimento do mandatário eleito em junho de 2021 da verdadeira composição política do país. É chocante que os meios de comunicação tendem a esquecer que Castillo venceu o segundo turno com 46,8% dos votos contra 46,6% de sua oponente, Keiko Fujimori, de Fuerza Popular. Ou seja, quando Castillo chegou ao Palácio do Governo em Lima, encontrou um país radicalmente dividido. Isso representou um dilema considerável: deveria levar adiante o programa esquerdista que o elegeu ou, em vista da divisão do país, deveria moderá-lo para tentar algum tipo de reunificação do país?
No fundo, este é o mesmo dilema que enfrentam os novos governos progressistas em Brasil, Colômbia, Chile e Argentina. Por isso, continuo argumentando que a América Latina não está vivendo uma nova onda progressiva, como aconteceu no início deste século. O exemplo de Luiz Inácio Lula da Silva é paradigmático. Seu primeiro governo foi o resultado de uma mudança no eleitorado para posições progressistas, venceu as eleições com mais de 60% dos votos. Hoje, porém, ele mal ultrapassou a metade do eleitorado. Tanto Petro como Boric, Fernández e Lula já sabem que terão que governar um país profundamente dividido, política e culturalmente. O que não está tão claro é se estão plenamente conscientes das consequências que isto significa na prática.
O drama atual do Peru deve ser um aviso aos navegantes, uma lição aprendida que não deve ser ignorada. Tudo indica que tentar promover um programa de esquerda em um país radicalmente dividido apresenta enormes riscos, o que poderia levar à busca de caminhos erráticos, como aconteceu de forma exagerada com Castillo.
A tarefa que os governos progressistas da região têm pela frente é complicada. Longe de impulsionar a fundo os programas de esquerda, devem encontrar um equilíbrio entre a execução moderada desses programas e amplos acordos com as forças da oposição para evitar uma polarização que conduza à ingovernabilidade em seus países. O abismo que o Peru está agora deveria ser um aviso poderoso para muitos governos vizinhos.
Autor
Enrique Gomáriz Moraga tem sido pesquisador da FLACSO no Chile e outros países da região. Foi consultor de agências internacionais (UNDP, IDRC, BID). Estudou Sociologia Política na Univ. de Leeds (Inglaterra) sob orientação de R. Miliband.