A guerra na Ucrânia desestabilizou a Europa e trouxe desafios adicionais à América Latina em meio a uma relação tensa com os Estados Unidos. A renovação da onda rosa reavivou as esperanças na esquerda de que uma nova onda progressiva era a resposta para o mal-estar social que a região vem experimentando nos últimos anos.
A pandemia de covid-19 só piorou o grave conflito social que a maioria dos países da região já estavam experimentando, em parte devido a problemas econômicos pelo crescimento da dívida e ao aumento das desigualdades como resultado da desaceleração de suas economias após o auge da comercialização de matérias-primas.
Esses desafios só tornaram mais proeminentes as profundas debilidades da maioria dos sistemas políticos no hemisfério, especialmente em relação ao estado de suas democracias e instituições e ao fracasso em abordar a causa raiz da agitação social e das dificuldades econômicas com políticas públicas rigorosas. As deficiências estão longe de ser um debate ideológico, o que torna as circunstâncias desta ascensão de governos de esquerda muito diferentes da onda rosa original.
As crises econômicas são recorrentes na história da Argentina há décadas, assim como as consequências políticas. Entretanto, como advertiu a cientista política Yanina Welp, foi preciso mais do que as atuais deficiências enfrentadas pelo governo de Alberto Fernández para inflamar o mal-estar social no passado. Os procedimentos judiciais contra a atual vice-presidente, Cristina Fernández, aprofundaram as divisões em um país altamente polarizado. Enquanto isso, as lutas internas no governo levaram a uma sucessão de ministros da economia encarregados de lidar com uma crise da dívida, déficit fiscal, inflação disparada, recessão contínua e aumento da pobreza, sem um esforço rigoroso de formulação de políticas que abordem as causas fundamentais da crise estrutural que divide o país.
Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse, enquanto o presidente cessante, Jair Bolsonaro, deixou um presidente interino para fugir da posse. Embora a transição fosse inevitável, havia esperança entre os apoiadores do ex-presidente de que ele seria restaurado ao poder com uma intervenção militar. Esta é provavelmente a melhor maneira de descrever os desafios do novo governo.
Como no Chile e Peru, Lula enfrentará um congresso controlado pela oposição que dificultará a realização de sua agenda política. O denominador comum nesta versão da onda rosa é a reprimenda do titular, com a oposição controlando a legislatura como um freio. Em um país polarizado onde o ex-presidente não cedeu formalmente, a promessa de unificar uma sociedade com a oposição negando-se a reconhecer a legitimidade do novo presidente é um sinal da batalha que espera Lula da Silva e sua coalizão. O ataque simultâneo ao Congresso, à Suprema Corte e ao Palácio do Planalto significa que Bolsonaro pode estar fora do poder formal, mas continuará exercendo influência do exterior.
No Chile, se esperava que as desigualdades históricas que levaram à agitação social em 2019 fossem superadas com uma nova Constituição. Em vez disso, o processo tornou-se em uma fonte adicional de divisão, onde uma maioria na Convenção Constitucional desperdiçou a oportunidade de redigir uma constituição que refletisse uma declaração política de justiça social ao tentar redefinir a estrutura institucional do país.
Embora o apoio a uma nova constituição fosse inicialmente amplo (78%), no referendo de saída a proposta ficou muito aquém da aprovação. O produto foi além das expectativas, e em vez de fechar a lacuna, aumentou as disparidades sociais. Depois de reconhecer a tentativa fracassada, o Presidente Boric se comprometeu a trabalhar para apoiar outro esforço mais inclusivo que reflita as aspirações do país. Será um desafio, mas como em outros países da região, o sucesso da agenda progressista dependerá da capacidade de um compromisso com uma ampla plataforma política em vez de perseguir objetivos progressistas sem consenso.
Gustavo Petro tornou-se o primeiro presidente esquerdista da Colômbia, escrevendo um novo capítulo na história do país. Sua ambiciosa agenda política aborda as desigualdades sociais que provocaram os protestos em 2021. Entretanto, há também uma urgência em redefinir as políticas para combater o narcotráfico e abordar a mudança climática, ambas conectadas aos Estados Unidos. Como aliado chave na região, o papel da Colômbia é extenso, considerando não só a implementação de políticas de drogas, mas também a conexão da Petro com seu vizinho, Maduro. A administração Biden sinalizou sua abertura para se comprometer com Petro, deixando claro que os dois países têm mais interesses em comum do que diferenças.
A destituição de Pedro Castillo no Peru se materializou depois que ele anunciou a dissolução do Congresso, pouco antes dos congressistas votarem uma terceira tentativa de impeachment por uma série de acusações envolvendo corrupção, entre outros escândalos. O golpe fracassado custou-lhe o cargo e agora está sob prisão, aguardando julgamento. A destituição de outro presidente é um sinal da instabilidade da presidência, mas também uma acusação que pesa sobre os partidos políticos.
O padrão que temos descrito no Chile ou Colômbia também está presente no Peru: desigualdade, exclusão e corrupção política. O apoio a figuras externas às elites políticas como reação aos políticos tradicionais segue prevalecendo entre o eleitorado latino-americano, favorecendo com frequência os políticos inexperientes que carecem de habilidades necessárias para garantir uma governança mínima. O caso Castillo é o mais recente, mas, na tradição peruana, tem sido uma característica recorrente do sistema político. O futuro da democracia na região parece preocupante, especialmente no Peru, onde as alternativas são limitadas.
E na Venezuela, a remoção do governo interino chega num momento em que se aproxima a discussão sobre a consolidação de Maduro e a necessidade de definir opções políticas para as eleições presidenciais de 2024. Depois de entregar a representação dos interesses da oposição à administração Trump, o “governo interino” de Juan Guaidó perdeu o ímpeto. Depois de ter confiado que as sanções seriam suficientes para enfraquecer Maduro e sua aliança, a oposição pareceu superada pelo regime, pois encontrou mais incentivos para permanecer unido do que razões para mudar o status quo.
A ascensão iliberal de regimes autoritários abertos, como Cuba, Nicarágua ou Venezuela e, em menor medida, El Salvador, são a verdadeira ameaça que as democracias enfrentam, seja de esquerda ou de direita. A onda iliberal é o verdadeiro desafio para a América Latina em 2023.
Autor
Professora Associada de Ciência Política no Valencia College (Orlando, Flórida). Doutora em Ciências Sociais pela Univ. de Carabobo (Venezuela). Presidente da Seção de Estudos Venezuelanos da Latin American Sutdies Association (LASA).