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O poder político na sombra

Há cinquenta anos, Héctor J. Cámpora ganhou as eleições presidenciais argentinas sob o slogan “Cámpora ao governo, Perón ao poder”. De fato, após seu triunfo eleitoral em março, liderando a Frente de Libertação Justicialista (FREJULI), apresentou sua demissão em julho para que Juan D. Perón pudesse ser candidato nas eleições de setembro do mesmo ano, que o devolveram à presidência após ter sido deposto do poder por um golpe de Estado 18 anos antes.

Na Espanha, dois anos depois, em novembro de 1975, o franquismo, que resistia em deixar o poder, alegou que tudo havia sido “atado e bem atado” graças à suposta continuidade que o novo monarca garantiria. No entanto, essa classe política desmoronou em questão de meses como um castelo de cartas.

Durante décadas, no México, o Partido Revolucionário Institucional (PRI) concebeu uma forma de continuidade sob a figura do “tapado”. Uma candidatura concebida na cúpula dirigente do regime político para se perpetuar no poder através de um esquema inédito de continuidade com figuras presidenciais que jogavam perfeitamente para o establishment.

O desejo de manter o poder de forma vicária é um assunto antigo que está presente na política, mesmo quando ela adota formas democráticas de governo em que há um mínimo de competição assegurada. Na maioria dos casos, trata-se de garantir a continuidade de um projeto político que geralmente está vinculado a um caudilho que diz respeitar a formalidade da cláusula de não reeleição, mas que acaba tendo o controle da situação nos bastidores.

Na América Latina, nas últimas duas décadas, o número de cenários em que circunstâncias semelhantes surgiram afeta metade de seus países. Na Argentina, Néstor Kirchner apadrinhou Cristina Fernández; no Brasil, Lula da Silva o fez com Dilma Rousseff; na Colômbia, Álvaro Uribe com Juan Manuel Santos; no Equador, Rafael Correa com Lenin Moreno; na Bolívia, Evo Morales com Luís Arce; no Paraguai, os presidentes do Partido Colorado o fizeram com seus co-militantes. É certo que em Colômbia, Equador e Bolívia não houve a continuidade esperada, com os eleitos tendo seu próprio programa, o que levou à ruptura com os patriarcas, mas o sinal enviado ao eleitorado foi inequívoco.

Entretanto, há situações em que o exercício de substituição envolve a cobertura de uma incapacidade física ou legal para a ação do poder. O protagonista incapaz de realizá-lo designa um sucessor em seu leito de morte (Hugo Chávez em Nicolás Maduro) ou o faz antes da campanha eleitoral de alguém que não pode competir nela (são os casos de Cristina Fernández e Alberto Fernández na Argentina; Vladimir Cerrón e Pedro Castillo no Peru; Mel Zelaya e Xiomara Castro em Honduras).

Essa propensão a se manter na sombra do poder político constitui um freio ao desenvolvimento da democracia em termos de concorrência real e efetiva entre distintas opções. Ao perseverar atores que instrumentalizam outros na busca de seus objetivos, a endogamia é garantida. Também impede a alternância e consolida a ideia da existência de uma elite entrincheirada que faz todo o possível para permanecer no poder. Por fim, contribui para a desinstitucionalização da política ao introduzir o uso de práticas informais ou interpretações fraudulentas das regras existentes.

A atualidade política na América Latina oferece exemplos desse exercício vicário de poder que oculta uma prática espúria de concorrência aberta no Brasil, Equador, El Salvador e México. Trata-se de casos distintos, mas contêm elementos dos observados acima que reforçam a perversão do jogo implementado.

O Supremo Tribunal Eleitoral do Brasil deixou Jair Bolsonaro inelegível até 2030, de modo que ele não poderá ser candidato até lá, mas isso trouxe consigo a proposta imediata de que sua esposa, Michelle, deveria ser a próxima candidata. Nas eleições presidenciais equatorianas de 20 de agosto, Rafael Correa, também inelegível, apostou na candidatura presidencial de Luisa González, do Movimiento Revolución Ciudadana, que, após denunciar a traição que acredita ter sido cometida por Lenin Moreno, declarou que Rafael Correa “será um de seus principais conselheiros [mas] eu nunca lhe ofereceria um perdão”.

Em El Salvador, o presidente Nayib Bukele e seu vice-presidente anunciaram que renunciarão em dezembro para que, segundo seus critérios particulares, possam concorrer como “novos” candidatos nas eleições de 2024. Por fim, Andrés Manuel López Obrador, em um hábil exercício de mudança da narrativa do movimento que lidera, eliminou a antiga e tendenciosa prática do “tapado” da política mexicana, substituindo-a pela dos “corcholatas”. Tenta, assim, convencer o eleitorado de que a situação atual do país é marcada pela competição entre os diferentes candidatos em um processo no qual ele tem as regras, em uma tentativa de garantir, por outro lado, que sua sombra continuará presente no futuro.

São casos diferentes que têm um denominador comum: a manutenção do poder na sombra a todo custo por parte de uma certa elite mediante mecanismos vicários, anulando as possibilidades de outras forças políticas e contornando quaisquer dispositivos de controle e prestação de contas.

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Diretor do CIEPS – Centro Internacional de Estudos Políticos e Sociais, AIP-Panamá. Professor Emérito da Universidade de Salamanca e UPB (Medellín). Últimos livros (2020): “O gabinete do político” (Tecnos Madrid) e em coedição “Dilemas da representação democrática” (Tirant lo Blanch, Colômbia).

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