O Sul Global não deve ser avaliado a partir de perspectivas ideologizadas e ameaçadoras. Para construir uma ordem mundial multipolar baseada no diálogo entre o Norte Global e o Sul Global, certas posturas são prejudiciais. Discursos hegemônicos ou militaristas cercam as interações entre regiões como a América Latina e o Caribe com a China, o Irã e a Rússia. Em vez disso, o que motiva o Sul Global a forjar uma estrutura horizontal e multirregional, cristalizada nos BRICS, são questões políticas, econômicas e sociais. Nenhuma delas envolve a exclusão do Norte Global; ao contrário, é uma tentativa de enfrentar os desafios globais que a ordem liberal pós-Guerra Fria não conseguiu resolver.
Quando, em 1989, Francis Fukuyama imaginou o “fim da história”, presumiu-se que o mundo era unificável sob o liberalismo ocidental. Portanto, não havia necessidade de nenhuma divisão entre o Norte e o Sul Global. A globalização teria sido o vetor para desafiar as divisões e diferenças entre blocos, como as que ocorreram durante a Guerra Fria. Embora guerras, golpes e crises econômicas persistentes tenham mostrado que a história não terminou por completo, essa abordagem pós-Guerra Fria ainda se aplica ao Sul Global.
A década de 2000 assistiu ao declínio contínuo da hegemonia dos Estados Unidos, que, como aponta o especialista Ikenberry (2018), está entrelaçada com a crise da ordem liberal. Nesse contexto, e quase simultaneamente, o Sul Global levantou sua voz sob o rótulo dos BRIC, tornando-se BRICS com a entrada da África do Sul. Todos os tipos de críticas e ceticismo foram direcionados às tentativas de integração do Sul Global. Uma das narrativas repetidas refere-se à falta de pontos em comum na maioria da população mundial, inclusive em fóruns como os BRICS, o Movimento de Países Não Alinhados e o G77.
Entretanto, a falta de compreensão do Sul Global não deve implicar sua inexistência. Países da América Latina e do Caribe, da África e da Ásia estão forjando uma esfera horizontal de relações internacionais. Essa tendência não é apenas uma reação ou um contra-ataque ao colonialismo ocidental, ao imperialismo ou à hegemonia estadunidense, já que os interesses próprios, ao contrário do que argumentam os realistas, não são os únicos impulsionadores dessa mudança. Os atores do Sul Global encontram consenso em valores políticos como a soberania, a autodeterminação e a vinculação ao sistema das Nações Unidas. Além disso, analogias econômicas específicas explicam a lógica por trás das interações do Sul Global.
Os legados da dívida externa, a dependência do dólar americano, a alta desigualdade e as economias extrativistas são limites para o Sul Global. Em outras palavras, é simplesmente incorreto afirmar que a diversidade do Sul Global invalida sua existência, pois há, de fato, desafios compartilhados. Poderíamos afirmar que os países do Sul Global, social e economicamente, estão reagindo à imposição do liberalismo do Norte Global.
Isso não quer dizer, por exemplo, que os estados latino-americanos estejam dispostos a imitar o modelo chinês, iraniano ou russo. Em vez disso, entre todas as diferenças existentes no Sul Global, há pontos em comum e uma necessidade de diversificação – emancipação do liberalismo hegemônico que colocou os Estados Unidos na vanguarda das relações internacionais. Se compararmos o Sul Global com suas contrapartes no Norte, ou seja, o G7, veremos que este último oferece um consenso unânime apenas em torno de alguns valores, como a democracia liberal, em parte o cristianismo (com exceções como o Japão) e algum tipo de ordem internacional baseada em regras.
O paradoxo é que a ordem liberal mostrou deficiências bem conhecidas que foram diretamente confrontadas pelo Sul Global. Para ser claro, a maioria dos países do Sul Global tentou obter receitas de instituições financeiras internacionais e organismos multilaterais do Ocidente – basta pensar no Consenso de Washington. Mesmo assim, os resultados não foram eficientes nem adequados aos contextos locais. Para o Sul Global, a história é uma prova de oportunidades perdidas, em parte devido às imposições ocidentais.
A teoria da dependência afirma que as periferias delineadas por Immanuel Wallerstein (1974) não conseguiam acompanhar o desenvolvimento do centro devido à subserviência das então conhecidas economias do Terceiro Mundo frente ao consumo e ao refinamento do Norte. Os BRICS, sendo a organização multirregional e multilateral do Sul Global, têm como objetivo justamente abandonar para sempre os mecanismos de dependência das economias do Sul Global.
Edward Said (1978) alertou contra a aplicação errônea dos valores ocidentais para definir e descrever o resto do mundo, especificamente o Oriente, nesse caso. Associar as palavras aliança ou bloco ao Sul Global é certamente enganoso. As ações da China, do Irã, da Rússia ou da Turquia, por exemplo, na América Latina e no Caribe não buscam forjar nenhuma coalizão antiocidental com estratégias militares no estilo da OTAN. É uma percepção de ameaça e interferência que, sendo dominante no Ocidente, prejudica a aproximação e os diálogos Norte-Sul.
A América Latina está diversificando seus intercâmbios com países pertencentes ao Sul Global por meio de uma agenda horizontal em que propostas e restrições são acordadas voluntariamente. Os países do Oriente Médio e da Ásia estão obtendo resultados positivos na América Latina em termos de assistência financeira (China nas ilhas do Caribe), cooperação energética (Irã na Bolívia) e projetos relacionados aos meios de comunicação realizados por emissoras russas na região. Esses casos são o resultado de uma interação integral do Sul Global. Nesse contexto, as potências individuais, não hegemônicas, do Sul Global, como China, Irã e Rússia, com a Turquia no meio, estão simplesmente reagindo à oposição ocidental com propostas atraentes para o Sul Global.
Os acontecimentos geopolíticos, especificamente o conflito Israel-Gaza e a guerra na Ucrânia, estão legitimando parcialmente a posição do Sul Global ao denunciar, por meio de organizações internacionais, os padrões duplos do Ocidente. É inerentemente lógico perceber que uma ordem mundial multipolar está crescendo como uma contraestratégia em vez de uma estratégia. O Sul Global é motivado por acusações, estigmatização e discursos militaristas que estão afetando o relacionamento entre o Norte e o Sul. A causa é apoiada por defensores de uma nova Guerra Fria que expressam posturas maniqueístas. Decepcionados com uma história que não terminou, alguns formuladores de políticas ocidentais adorariam repetir uma ordem internacional dicotômica baseada em blocos, dado o resultado vitorioso defendido após a disputa entre os Estados Unidos e a URSS.
O BRICS servem para evitar tal cenário. Um Sul Global agrupado nessa organização multirregional e multilateral, não para criar uma aliança militar, mas para reduzir a dependência do dólar estadunidense, o que é compreensível, dados os efeitos da crise de 2008 sobre as economias do Sul Global, é revelador. O caminho futuro dos BRICS e do Sul Global está relacionado à agência, que, espera-se, seja um fator fundamental nas relações internacionais. A agência do Sul Global determinará a coordenação ou a hostilidade nos assuntos mundiais, onde a democracia liberal não parece ser uma prioridade. Ao mesmo tempo, o Norte Global tem a capacidade de estabelecer sua posição em relação ao Sul Global, debatendo uma atitude de conversação ou de confronto. Essa última já demonstrou suas negatividades, descritas na votação do Sul Global na ONU sobre sanções, no conflito Israel-Gaza e na guerra russo-ucraniana.
As oportunidades para a América Latina, a África e a Ásia não são prejudiciais ao Ocidente. O combate à desigualdade e à pobreza, a reforma do sistema financeiro internacional e a construção de processos de paz duradouros em regiões voláteis, como o Oriente Médio, representam desafios compartilhados entre o Norte e o Sul Global. A tentativa de impor a hegemonia para dar um novo fim à história, em vez disso, ampliará as lacunas políticas, econômicas e sociais no mundo multipolar de hoje.
Autor
Cientista político com mestrado em Diplomacia e Relações Internacionais pela Escola Diplomática da Espanha. Mestrando em Estudos Latino-Americanos pela Universidade de Georgetown, onde é Assistente de Ensino e Pesquisa.